SILVEIRA, Nise Magalhães da (Maceió, Alagoas, Brasil, 15/02/1905 – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 30/10/1999).
Foi médica, psiquiatra, combateu o confinamento e os procedimentos invasivos utilizados à época nos hospitais psiquiátricos, combateu o eletrochoque, a insulinoterapia e a lobotomia. Foi pioneira na terapia assistida por animais. Foi uma das figuras mais expressivas na humanização do tratamento de transtornos mentais no Brasil do século XX.
Nise da Silveira nasceu em Maceió, no estado de Alagoas, em 1905. Filha da pianista Maria Lídia da Silveira e de Faustino Magalhães da Silveira, matemático, jornalista e educador. Ainda na infância Nise foi matriculada na tradicional escola de freiras para meninas Colégio Santíssimo Sacramento. Aos 16 anos de idade, ingressou na Faculdade de Medicina em Salvador, na Bahia, onde foi a única mulher de sua turma em meio aos 157 colegas homens. Entre 1921 e 1926 ela cursou medicina e foi uma das primeiras mulheres a exercer a profissão no Brasil. A tese que defendeu ao final do curso, Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil (1926), buscava traçar um perfil das mulheres que cometiam crimes, fazendo emergir temas ainda vistos como tabu, tais como a prostituição e o aborto.
Sua experiência com o autoritarismo e a crueldade dos homens das ciências médicas foi relatada por ela como seu primeiro encontro com“o mal” em ocasião de uma aula prática de parasitologia quando ainda cursava o primeiro ano de medicina. O então famoso professor Pirajá da Silva, ao entrar na sala de aula lotada, lançou a ideia de se criar um serpentário na faculdade e pediu a colaboração de toda a turma, momento em que chegou na sala um assistente do professor com um vidro contendo uma serpente. O professor retirou a serpente e pediu para Nise da Silveira segurá-la garantindo que não era uma cobra venenosa. Ela, que era uma jovem estudante em meio a um universo totalitariamente masculino, estendeu os braços e segurou a serpente: “nesse instante, olhou bem nos olhos do mestre e viu, pela primeira vez, de frente, o que considerou a representação do mal” (Bezerra, 1995, p 137). Ao segurar a serpente e encarar o autoritário professor, ela criou um elo entre sua capacidade de aprendizagem e as limitações das ciências médicas tradicionalistas e misóginas. A ocasião, dentre outras, fortaleceu seu caráter e a fez romper as barreiras de acesso as mulheres tornando-se a psiquiatra mais conceituada no tratamento humanizado de transtornos mentais do Brasil no século XX.
Depois de formada Nise se especializou na área da psiquiatria. Conheceu o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira com quem se casou e conviveu até o falecimento dele em 1986. Não tiveram filhos. Quando, em 1927, morreu seu pai, sua mãe já havia falecido. Naquele mesmo ano mudou-se com o marido, para o Rio de Janeiro para atuarem no campo da medicina. Em 1933 passou em um concurso público para o Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II no Rio de Janeiro e iniciou o trabalho que a tornaria um exemplo de mudança na forma invasiva e autoritária de tratamento psiquiátrico adotada na época. Por discordar dos métodos adotados nas enfermarias e se recusar a aplicar eletrochoques em pacientes, foi transferida para o trabalho com a chamada “terapia ocupacional”, atividade então menosprezada pelos médicos.
No Rio de Janeiro escreveu sobre medicina para o jornal A Manhã, realizou estágio na clínica do Doutor Austregésio, considerado precursor da neurologia no Brasil, e atuou no Hospital da Praia Vermelha. Entre os anos de 1928 e 1935, envolveu-se nas atividades da Liga Anti-Imperialista do Brasil, do Comitê Feminino Contra a Guerra, em Defesa da Paz Universal, da Cultura e da Humanidade e da União Feminina do Brasil.
Revolucionou o ambiente hostil e torturante dos centros psiquiátricos através da terapia assistida por animais e da arte como elemento terapêutico. Priorizou o uso do termo “clientes” em substituição a “pacientes”. A médica e psiquiatra Nise da Silveira se destacou em seus estudos sobre o comportamento humano e o tratamento de patologias psicológicas influenciados pelas ideias de Carl Gustav Jung (1875 – 1961) bem como sobre o conceito de imaginação criadora, de Gaston Bachelard (1884 – 1962). Revolucionou a maneira de tratar os portadores de sofrimento mental utilizando técnicas artísticas, tais como: pintura, escultura e desenho. Sua obra foi marcada pelo debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais, por ela nomeados “animais não humanos”. Foi pioneira nas práticas de adotar as relações emocionais entre pacientes e animais não humanos como parte de seus tratamentos. Além disso, foi forte opositora dos tratamentos tradicionais usados naquele período, tais como o eletrochoque, o uso de drogas — que ela nomeava de “camisa de força química” — e o confinamento clínico.
Nas décadas de 1950 e 1960, Nise da Silveira investiu nas relações afetivas entre os animais não humanos e os/as clientes internos para criar um elo de comunicação que havia sido rompido graças aos modelos tradicionais. Ela percebeu a facilidade com que os/as esquizofrênicos/as se vinculavam aos cães. Em seu trabalho desenvolveu o conceito de “afeto catalisador” (Silveira, 1998). Ela partiu da ideia de que é importante que o cliente conte com a presença não invasiva de um coterapeuta (o animal não humano) que permanecerá junto àquele como um apoio seguro para que possa se organizar psiquicamente. Após ilustrar exemplos de coterapeutas, Silveira afirmou que animais não humanos são excelentes catalisadores, pois reúnem qualidades que os fazem muito aptos a tornarem-se ponto de referência estável no mundo externo, facilitando a retomada de contato com a realidade.
A aproximação dos internos com os animais não humanos do Centro Psiquiátrico Pedro II começou por acaso, quando foi encontrada uma cadelinha abandonada e faminta no terreno do hospital. Silveira tomou-a nas mãos e, percebendo a atenção de um dos internos, perguntou-lhe se gostaria de tomar conta do bichinho “com muito cuidado”. Diante da resposta afirmativa, ela deu o nome à cachorrinha de Caralâmpia (inspirada em uma personagem do livro A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos). Os resultados terapêuticos da incumbência assumida pelo cliente foram excelentes. Ao longo de sua obra a médica faz referência a outros casos em que ocorrem relações afetivas entre clientes e animais não humanos, como, por exemplo, o caso de Abelardo, um cliente temido por sua irritabilidade e força física, que assumia uma postura tranquila quando tomava conta de alguns cães e gatos, mostrando-se apto a cuidar deles e trocar afetos; bem como o exemplo da paciente Djanira, que teve sua capacidade criativa como pianista retomada por meio da relação com bichos. Em seu livro Gatos, a emoção de lidar, Nise relatou como foi romper com um pesado termo: “enquanto manipulava seu gato de veludo, com surpreendente habilidade, Luiz Carlos parecia feliz e disse: ‘Como é macio! Sinto grande emoção de lidar com ele entre minhas mãos’” (Silveira, 1998, p. 30).
Em 1952 Nise da Silveira fundou o Museu do Inconsciente no Rio de Janeiro, um centro de estudo e pesquisa criado para abrigar o acervo de obras e a preservação dos trabalhos produzidos nos ateliês inaugurados no Centro Psiquiátrico Pedro II, valorizando-os como documentos que abriram novas possibilidades para uma compreensão mais profunda do universo interior do/a esquizofrênico/a. Dentre os artistas-clientes que criaram obras incorporadas na coleção desta instituição podemos citar: Adelina Gomes; Carlos Pertuis; Emygdio de Barros e Octávio Inácio. O acervo alimentou a escrita de seu livro Imagens do Inconsciente, bem como filmes e exposições, participando de exposições significativas, como a Mostra Brasil 500 anos. O acervo foi e permanece reunido no Museu de Imagens do Inconsciente o qual ganhou projeção internacional. Alguns dos quadros foram levados para o II Congresso Internacional de Psiquiatria em 1957, na cidade suíça de Zurique. Esta exposição, ocasião do encontro entre Nise e Carl Gustav Jung, foi inaugurada pelo próprio Jung, um dos maiores nomes no estudo da psique humana.
Entre 1983 e 1985 o cineasta Leon Hirszman realizou o filme Imagens do Inconsciente, trilogia mostrando as obras realizadas pelos internos a partir de um roteiro criado por Nise da Silveira. Depois foram feitos muitos outros filmes, documentais e biográficos. Em 2016, foi lançado o longa metragem intitulado: Nise: o coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner. Resultado de 13 anos de pesquisa, o filme destacou o período que Nise atuou no Hospital Psiquiátrico. No mesmo ano o espetáculo Nise da Silveira: Guerreira da Paz narrou o encontro da médica alagoana e da obra de Carl Jung. A peça foi dirigida e interpretada por Daniel Lobo com a coreografia da renomada bailarina Ana Botafogo e ficou em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (MASP) durante uma temporada de grande sucesso.
Viveu em uma época de acirramento da política totalitária no Brasil e, por isso, foi presa e encarcerada por mais de um ano, denunciada por manter em sua biblioteca livros considerados subversivos. No presídio conviveu com o escritor Graciliano Ramos, que narrou essa amizade em seu livro Memórias do Cárcere. Nise da Silveira foi presa pela primeira vez dia 20 de fevereiro de 1936, mas foi liberada logo em seguida. Em 26 de março de 1936, foi novamente encarcerada no presídio da rua Frei Caneca na cidade do Rio de Janeiro. Foi liberada em 21 de junho do ano de 1937. O caso foi relatado no livro Sala 4: primeira prisão política feminina, que registra o encontro das “irmãs de cela”: Olga Benário, Maria Werneck, Beatriz Ryff e Valentina Leite. Em 1944 foi reintegrada ao serviço público e iniciou o seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, onde retomou a sua luta contra as técnicas psiquiátricas que considerava agressivas e cruéis aos pacientes.
Em 2017 seu arquivo pessoal foi considerado Memória do Mundo pela UNESCO. O Centro Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro recebeu o nome de Instituto Municipal Nise da Silveira em sua homenagem. Em 2015 foi incluída na lista das Grandes mulheres que marcaram a história do Rio de Janeiro. Seu legado é gigante e longínquo, suas ideias inspiraram a criação de museus educativos, centros culturais, instituições terapêuticas no Brasil e no exterior, citamos alguns: “Museu Bispo do Rosário” (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil), “Centro de Estudos Nise da Silveira” (Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil), “Espaço Nise da Silveira” (Recife, Pernambuco, Brasil), “Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira”, no Hospital Psiquiátrico São Pedro (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil), “Associação de Convivência, Estudo e Pesquisa Nise da Silveira” (Salvador, Bahia, Brasil), “Centro de Estudo das Imagens do Inconsciente”, Universidade do Porto (Portugal), “Association Nise da Silveira: Images de l’Incoscient” (Paris, França) e “Museo Attivo dele Forme Inconsapevoli” (posteriormente renomeado: “Museoattivo Claudio Costa” (Genova, Itália).
Obra
Bibliográfica
- “Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil”, These Doutora em Sciências Médico-Cirurgicas, Faculdade de Medicina da Bahia, Salvador, 1926, 113p.
- Jung: vida e obra, Rio de Janeiro, José Álvaro edições, 1968.
- Imagens do inconsciente, Rio de Janeiro, Alambra, 1981.
- Casa das Palmeiras, a emoção de lidar, uma experiência em psiquiatria, Rio de Janeiro, Alambra, 1986.
- (Org.), A farra do boi: do sacrifício do touro na antiguidade à farra do boi catarinense, Rio de Janeiro, Numen, 1989.
- O mundo das imagens, São Paulo, Ática, 1992.
- Cartas a Spinoza, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995.
- Gatos, a emoção de lidar, Rio de Janeiro, Léo Christiano Editorial, 1998 (fotos: Sebastião Barbosa).
- Images de l’inconscient, Paris, Halle Saint Pierre, 2005.
Cómo citar esta entrada: Lessa, Patricia (2021), “Silveira, Nise da”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org