LIMA, Heitor Ferreira (seudónimo: MÁRIO SILVA, José Meza) (Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, Brasil 1905 – São Paulo, Brasil 1989).
Viveu sua infância em diversas cidades na fronteira entre Brasil e Paraguai. Mudou-se com sua mãe para o Rio de Janeiro em 1922 com o objetivo de se instruir. Seu primeiro ofício foi o de alfaiate, que possibilitou seus estudos na então capital do País.
Em meados de 1923, iniciou seu engajamento político como militante sindical na União dos Alfaiates e Classes Anexas, órgão que seguia a orientação do Partido Comunista do Brasil, PCB, fundado em 1922, partido a cujas reuniões Heitor passou a comparecer assiduamente, vindo a se filiar ao partido em novembro de 1923. Sem pertencer ao núcleo dos membros fundadores, Heitor se liga estreitamente às lideranças de Astrojildo Pereira e de Cristiano Cordeiro. Seu ativo engajamento rendeu-lhe uma ascensão gradativa aos postos mais altos da União; em 1924 substituiu o segundo tesoureiro, e no ano seguinte foi eleito segundo secretário; em 1926, além de assumir o cargo de primeiro secretário, passou também a dirigir o periódico da categoria O Alfaiate, tendo chegado a ser Secretário-Geral em 1927. Durante sua atuação na União participou ativamente da divulgação do jornal Classe Operária.
Foi escolhido em 1927 para representar o PCB nos festejos do 10º aniversário da Revolução Russa e para ser o primeiro brasileiro a fazer o curso da Escola Leninista Internacional em Moscou. Para fins de sigilo e sua proteção, adotou o pseudônimo Mário Silva e teria visto Stálin na recepção aos alunos que fariam o curso. Sua primeira leitura na Escola Leninista Internacional foi Questões de Leninismo, de Stálin.
Seu trabalho de conclusão de curso na Escola Leninista Internacional versava sobre a questão agrária no Brasil, tendo utilizado o Recenseamento Geral de 1920 para dados estatísticos e as obras de Lênin para análise dos problemas da economia rural e dos trabalhadores camponeses. O estudo na conclusão ressaltava o caráter urgente das soluções necessárias a serem tomadas para a eliminação dos diversos fatores negativos que o setor produtivo apresentava na economia brasileira. Heitor foi o único historiador e intelectual brasileiro formado numa escola da Terceira Internacional.
Durante sua estada na União Soviética, foi convidado a participar de algumas reuniões dos V e VI Congressos da Internacional Comunista. Neste último, no qual a delegação brasileira era composta por Paulo de Lacerda, José Lago Molares e Leôncio Basbaum, a ordem do dia tinha como objetivo produzir teses sobre o movimento revolucionário nas colônias e semicolônias. Com base nas recomendações, em 1929 foi fundada a Confederação Sindical Latino Americana sediada em Montevidéu, idéia surgida em reunião de dezembro de 1927 entre A. Losovsky, à época dirigente da Internacional Sindical Vermelha, com representantes latino americanos da Escola Leninista Internacional, tendo Heitor Ferreira Lima participado ativamente em todo o processo.
Na União Soviética, Heitor Ferreira Lima presenciou as duas mais duras dissensões ocorridas na história do Partido Comunista russo, sendo a primeira a chamada de Oposição Trotskista e depois de Oposição Unificada (ao juntarem-se Trotski, Zinoviev e Kamenev), também conhecida por Luta de Stálin contra Trotski, e a segunda, a Oposição de Direita, originada pela divergência entre Bukhárin, Rykov e Tomski, de um lado, e Stálin, Molotov e Kuibychev, do outro.
Seu regresso ao Brasil teve ares épicos. Os passaportes dos alunos da Escola Leninista ficavam em poder da Internacional Comunista, que iniciou os trâmites junto ao consulado alemão em Moscou para obter o visto indispensável para o retorno de Heitor ao Brasil. O consulado, no entanto, negou tal visto alegando estar ultrapassada a validade do passaporte. Em face de tal impasse, a IC providenciou um passaporte venezuelano com o nome de José Meza, nome este escolhido pelo próprio Heitor. Antes de usá-lo, porém, Ferreira Lima deveria tentar obter o visto no consulado alemão da então Leningrado, o que não conseguiu. Tendo em vista a negativa, Ferreira Lima foi informado que teria de ir clandestinamente à Alemanha para obter um visto.
Embarcou, então, no “Rudzutak”, pequeno navio de passageiros, que aportou em Kiel (antiga base naval da esquadra alemã), onde ficou trancado em um camarote enquanto se realizavam as vistorias de praxe. Algumas horas depois, foi levado a terra e apresentado a um jovem alemão que lhe comprou o bilhete para a viagem de trem até Berlim, que sairia em breve.
Finalmente, no consulado brasileiro em Berlim, Ferreira Lima resolveu sua situação, alegando ter perdido seu passaporte e ter entrado na Alemanha pela Bélgica, apresentou o título de eleitor e, depois de alguns dias, já com seu passaporte em mãos, partiu de navio de volta ao Rio de Janeiro.
Ao retornar ao Brasil, encontrou o PCB completamente modificado, a tal ponto que Heitor não conhecia quase nenhum de seus membros. Como corretamente observou José Paulo Netto, Heitor se prepara no âmbito de uma Internacional que ainda não se encontrava sob o domínio completo de Stalin. Retornando ao Brasil , Heitor reencontra um PCB bolchevizado, submetido ao controle da IC: herdeiro dos traços do partido no período anterior, entra em colisão com os novos rumos do partido.. Nesse contexto, ao final do ano de 1930, Heitor foi incumbido de substituir Astrojildo Pereira na Secretaria Geral do PCB, função que desempenhou por seis meses. Tal função estava sendo desempenhada interinamente por Inês Guralski, um dos principais agentes enviados pela Internacional Comunista, em Moscou, para o desmantelamento da antiga direção do PCB.
Em 1931, o PCB, com grande envolvimento de Ferreira Lima, convocou a “Marcha da Fome”, manifestação de desempregados que pregava o assalto aos armazéns e que ocorreu em 19 de janeiro de 1931, na Praça da Bandeira, culminando em inúmeras prisões e no reerguimento do PCB, em razão do engajamento popular. Naquele mesmo ano, a mãe de Heitor foi presa, pois a polícia localizou em sua casa um caixote de livros e impressos julgados subversivos.
Inês Guralski esperava impor sua vontade à gestão de Ferreira Lima como Secretário-Geral do PCB, o que não conseguiu, visto que Ferreira Lima mantinha fortes laços com Astrojildo Pereira e uma concepção autônoma e nacional do partido. Tal situação acarretou desentendimentos com membros do Bureau Político do PCB, órgão este que viria a causar enormes transtornos na vida de Heitor. Foi então proposta sua ida ao Nordeste, para avaliar a situação do local das células do PCB e reforçar o trabalho em tal região, transferência que aceitou prontamente, sem se dar conta das intenções do Bureau Político.
Em Recife, insuflou o movimento grevista do setor ferroviário, que acabou por se alastrar para os carregadores de açúcar e para os gráficos, levando as autoridades a buscar uma composição rapidamente. No início de 1932, após a conclusão de sua missão em Pernambuco, dirigiu-se ao Rio Grande do Norte e, posteriormente, ao Ceará. Ali, Heitor constatou a existência de dois grupos divergentes dentro da célula local do PCB: os chamados intelectuais e os operários. Heitor, habilmente, não tomou qualquer partido e agiu para amenizar as dificuldades e divergências.
Durante sua estada no Ceará, foi alertado por um camarada que trabalhava nos correios que sua prisão havia sido pedida, o que fez com que se mudasse rapidamente. Durante seu traslado para Teresina, feito na carroceria de um caminhão, foi capturado e deportado para o Rio de Janeiro, sendo recolhido à Polícia Central e, posteriormente, transferido para a Colônia Correcional de Dois Rios, temido presídio localizado em Ilha Grande.
Decorridos alguns meses de seu encarceramento e visto que não havia sido instaurado qualquer processo, retornou à terra firme, novamente para o presídio da Polícia Central, onde ficou quatro dias sem qualquer notícia de sua sorte.
Revoltado, armou gritaria e algazarra, pelo que foi novamente embarcado para Dois Rios, menos de uma semana após ter saído, onde, afinal, depois de seis meses, foi libertado em dezembro de 1933.
Já em liberdade em janeiro de 1934, assumiu cargo no Bureau Político, para o qual fora escolhido em Conferência Nacional do PCB, ocorrida enquanto Heitor ainda estava recluso na Colônia Correcional. Ficou pouco tempo no cargo por discordar das linhas traçadas para a atuação do PCB. Foi, então, afastado do Bureau Político, sem transferência para qualquer órgão regional ou de base, como era de praxe, o que aceitou, pois não quis abrir luta dentro do partido. Seus antagonistas, entrementes, organizaram uma Conferência Nacional em Niterói, para a qual Heitor e Mário Grazzini foram levados sem saber para onde iam e nem que assistiriam a uma Conferência Nacional, cujo principal tema da ordem dia era a divergência corrente em torno dos rumos do Bureau Político. Os presentes fizeram uso da palavra para desferir ataques gratuitos a Ferreira Lima e Grazzini, culminando na expulsão deles das fileiras PCB. Mas como os dois militantes se retrataram de suas posições, a expulsão foi anulada.
Não tendo sido atribuída qualquer função a Heitor no PCB, retornou ao seu ofício e procurou a União dos Alfaiates e Classes Anexas, sendo muito bem recebido, tendo seu nome lançado para disputar o cargo de delegado classista dos trabalhadores para a Câmara Federal. Iniciou campanha e, tendo ido à residência de outro alfaiate a fim de obter apoio a sua candidatura, foi rendido e conduzido ao quartel da Polícia Especial, onde ficou sentado três dias e duas noites, sobrevivendo à base de água.
Por causa de sua imunidade (pelo fato de ser candidato a delegado-eleitor da União dos Alfaiates), Ferreira Lima foi transferido para o Presídio Liberdade em São Paulo, de onde foi deportado para o Uruguai. Dali retornou a São Paulo, de onde seguiu para o Rio de Janeiro em um caminhão de carga, por ser arriscado o retorno de trem.
Foi, então, reintegrado ao PCB na qualidade de diretor da escola do Partido e requisitado a criar a escola do Partido em São Paulo, ao que aceitou, mudando-se para ali com sua mãe. Escasseando-se os recursos do PCB, Ferreira Lima foi obrigado a “ligar-se à produção” e começou a traduzir livros para a Athena Editora. Em meados de 1936, teve como missão restabelecer o contato do partido com as células de Minas Gerais e Mato Grosso.
Em vista de mais uma querela com membros do Bureau Político, Ferreira Lima articulou, em outubro de 1937, juntamente com 14 influentes membros do Comitê Regional de São Paulo, o “Documento dos 15”, pedindo a realização de uma Conferência Nacional para examinar as questões controvertidas e eleger uma diretoria regular para o PCB. Não sendo atendidos em tais pedidos, articularam então a criação de um Comitê Central Provisório, para o qual contaram com o apoio de diversos estados, e Ferreira Lima foi indicado Secretário-Geral.
Em maio de 1938, foi preso e levado à Ordem Política e Social. Ali foi interrogado e permaneceu detido e incomunicável em um cubículo por mais de um mês, de onde foi transferido para a enfermaria da Casa de Detenção na avenida Tiradentes, sob o receio de que era tuberculoso. Posteriormente, foi transferido para o Presídio do Paraíso, vindo a ser condenado a um ano e três meses de prisão no processo movido contra ele pelo Tribunal de Segurança Nacional.
Em fins de 1939, retorna ao Rio de Janeiro, vindo a trabalhar numa empresa de gás néon como chefe de escritório. Depois de diversos ataques dos membros do Bureau Político, desferidos inclusive contra a mãe de Ferreira Lima, sua estada no Rio de Janeiro ficou difícil, quase insuportável. Ao receber convite para trabalhar na publicidade do jornal O Esporte, aceitou, mudando-se mais uma vez para a capital paulista. Não tendo o trato necessário para lidar com publicidade, surgiu a idéia de mudar-se para o Uruguai, onde já estavam alguns exilados brasileiros. Lá não foi bem recebido, tendo em vista a propaganda negativa contra ele, promovida pela Internacional Comunista, influenciada pelo Bureau Político do PCB.
De volta a São Paulo, começa a trabalhar em O Observador Econômico e Financeiro, bem como colaborador, jornalista e tradutor para diversos jornais, semanários e periódicos e editoras. Em agosto de 1943, torna-se o diretor da sucursal paulista de Observador Econômico e Financeiro, onde trabalhou por 13 anos.
Foi então convidado por Roberto Simonsen, presidente da recém criada Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, para compor o Conselho de Economia Industrial de tal entidade, vindo a se tornar economista do Departamento de Economia de tal órgão e se incumbido de participar na preparação nas teses que a indústria deveria apresentar na Conferência de Bretton-Woods, particularmente com relação à política comercial entre as nações, entre outros trabalhos. Essa foi a sua ocupação profissional até a aposentadoria.
Abandonou gradualmente a sua militância partidária, e após as eleições presidenciais de 1945, se limitou, segundo suas próprias palavras, “a acompanhar pela imprensa a ação do PCB, bem como das demais agremiações políticas em ação no território nacional”.
Em meados de 1987, foi eleito presidente da Comissão de História do Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
Heitor publica sua primeira obra sobre Castro Alves em 1942, reeditada como Castro Alves e sua época (Saraiva, São Paulo, 1970), mas, a partir dos anos 1950, aprofunda suas pesquisas sobre a história da industrialização do Brasil, concentrando seus estudos nos campos da história do pensamento econômico e da industrialização brasileira, de onde resultaram as seguintes obras: Evolução Industrial de São Paulo (Martins, São Paulo, 1954), durante as comemorações do Quarto Centenário da fundação da cidade de São Paulo, Formação Industrial do Brasil (Fundo de Cultura, São Paulo, 1961), Mauá e Roberto Simonsen (Edaglib, São Paulo, 1963), Do Imperialismo à Libertação Colonial (Fundo de Cultura, São Paulo, 1965), História Político-Econômica e Industrial do Brasil (Editora Nacional, São Paulo, 1970). Aposentou-se em 1975 e publicou Três industrialistas brasileiros (Alfa-Ômega, São Paulo, 1976) e História do Pensamento Econômico do Brasil (Brasiliana, São Paulo, 1978). Foi um dos fundadores e colaboradores da Revista Brasiliense.
Escreveu suas memórias, Caminhos Percorridos – memórias de militância (Brasiliense, São Paulo, 1982), escolhendo para epígrafe um verso de Eugueni Evtuchenko: “Mas evocar o passado para nós é pensar o futuro”. No livro, relembrou o percurso privilegiado do menino de Três Lagoas, aluno no Rio, sindicalista, militante, estudante na Escola Leninista de Moscou, secretário-geral do PCB, dissidente muitas vezes preso, jornalista, economista e historiador. O último livro que publicou foi Perfil Político de Silva Jardim (Comp. Ed. Nacional/INL, São Paulo, 1987). Administrou sua longa vida sem renegar nada. Talvez porque além da honestidade, o que marcava Heitor era uma enorme elegância, entendida como delicadeza, tato, fineza. Que devia estar aliada a certo senso da compostura, legado do velho ofício de alfaiate, até o final.
Obra
- Caminhos Percorridos – memórias de militância, São Paulo, Brasiliense, 1982.
Cómo citar esta entrada: Pinheiro, Paulo Sérgio e Dias, Rafael Felice (2020), “Lima, Heitor Ferreira”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org