SAFFIOTI, Heleieth (Ibirá, São Paulo, Brasil 04/01/1934 – São Paulo, São Paulo, Brasil 13/01/2010).
Feminista, professora, escritora, intelectual, pioneira brasileira a fazer da mulher um objeto de pesquisa nas ciências sociais.
Filha da costureira Ângela Bongiovani e de um pedreiro – sobre o qual infelizmente há escassez de registros -, nasceu em uma pequena cidade do Estado de São Paulo chamada Ibirá. Heleieth Saffioti é oriunda de família humilde. Ela era a mais velha da família e tinha um irmão. Sua infância foi permeada por diversas dificuldades financeiras as quais ela sempre ressaltava em entrevistas. Ingressou no ginásio, no Instituto de Educação “Caetano de Campos”, em 1948, aos 14 anos. Em 1948, o ensino primário tinha quatro anos de duração e era seguido do ensino ginasial também com quatro anos, e Saffioti completou com rigor os estudos (Oliveira, 2019, p.16). Com 18 anos, trabalhava de dia como secretária e estudava à noite na Escola Normal da Praça, iniciando seus estudos na área de educação. Em 1956, aos 22 anos, casou-se com o professor e químico Waldemar Saffioti, ano em que também prestou vestibular para o curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), onde iniciou suas pesquisas sobre as questões femininas sem dissociá-las da temática da luta de classes no capitalismo contemporâneo.
Em 1960, o marido foi dar aula na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, São Paulo, e Saffioti o acompanhou, também na condição de professora. Segundo a mesma, foi um tempo de trabalho intenso: no início de 1963, começou a funcionar as Ciências Sociais “[…] Aí foi duro porque havia quatro anos de Sociologia em Pedagogia, um em Letras. […] Quer dizer que em 1963, eu já tinha seis cursos anuais de trabalho, sozinha” (Saffioti, 2011, p.73). Cabe ressaltar também que a socióloga também fora professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora visitante na Faculdade Serviço Social da UFRJ. Na primeira, PUC-SP, foi docente entre 1986 a 2006, ano que houve demissões em massa, mas que não deixou de gerar suspeitas de perseguição ideológica no caso da Saffioti, pois a mesma havia acabado de publicar um artigo na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), o qual a socióloga saia em defesa da descriminalização do aborto.
Heleieth Saffioti pode ser considerada uma das pioneiras brasileiras a fazer da mulher um objeto de pesquisa nas ciências sociais. Orientada pelo professor Florestan Fernandes na Universidade de São Paulo (USP), sua tese de doutorado intitulada de “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”, publicada pela primeira vez em 1969 pela Editora Quatro Artes, contribuiu aos estudos feministas e de gênero por diversos aspectos. De acordo com Renata Gonçalves, seu estudo é reconhecido como pioneiro por se propor a analisar a situação das mulheres como um “efeito” da sociedade de classes, o que seria uma parte da trajetória desta intelectual que ousou inaugurar a produção de uma teoria feminista fora dos grandes centros do saber instalados nos países de capitalismo avançado (Gonçalves in Saffioti, 2013, p.11), no sentido de atrelar a condição feminina amparada na tríade raça, classe e gênero.
Em uma entrevista concedida no ano de 2004, a socióloga relata as dificuldades que enfrentou no seu processo de escrita da tese, inseguranças e síndrome de impostora, principalmente pelo fato de que seu orientador, Florestan Fernandes, ter criticado duramente seu trabalho ao mesmo tempo que a incentivava em ir diretamente para a livre docência. ‘Fiquei quase louca, pois, se o trabalho merecia críticas tão sérias, não era de boa qualidade. Assim, como poderia eu enfrentar uma banca examinadora de cinco professores, altamente gabaritados? […] Depois de uns 15 dias, decidi mostrar para ele que eu tinha fibra’ (Saffioti, p.150, 2004). A banca examinadora de defesa da livre docência foi composta por quatro professores homens, entre eles Antonio Candido, e uma única professora mulher, Gioconda Mussolini, antropóloga brasileira, a qual tinha sido professora de Saffioti na USP e que compôs a banca por insistência de Saffioti. Embora ela fizesse questão de ter membras mulheres em sua banca, conseguiu colocar apenas uma. Neste dia, os corredores da Universidade de São Paulo ficaram cheios, bem como a sala na qual ocorria a defesa estava intransitável, afinal uma aluna tão nova estava perante a uma banca de peso em pleno contexto de Ditadura Militar, defendendo uma tese que pautava a destruição causada pelo regime capitalista à condição das mulheres na sociedade.
Saffioti não descolou a abordagem classista de suas análises acadêmicas, pois essa, além de ter se inserido no contexto intelectual, conciliava também a militância feminista que à época se encontrava no contexto de Ditadura Militar no Brasil, década de 1960. Juntamente com outras intelectuais e militantes como Carmen da Silva, Rose Marie Muraro, Maria Lygia Quartim de Moraes, consolidou-se em solo brasileiro a compreensão da dinâmica feminista nacional classista, sobretudo a partir das publicações dessas mulheres. Cabe ressaltar que Saffioti nunca fez parte do Partido Comunista ou de qualquer outro partido. Ela se considerava uma militante independente e que, apesar de não ter sido presa e torturada no contexto da Ditadura Militar, foi perseguida em sua docência. Segundo a socióloga “eu sabia que meu nome estava na lista dos demissíveis, sabia que eu poderia perder o emprego a qualquer momento e aí seríamos os dois desempregados, mas eu não mudei meu sistema de aulas” (Saffioti in Méndez, p. 292, 2008).
No período de ditadura militar, Saffioti ficou muito próxima da ativista e socióloga Maria Conceição D’Incão, essa que morava também em Araraquara, São Paulo.
Por conta do contexto e das represálias que as universidades sofriam pelo contexto da Ditadura Militar, Maria e Saffioti frequentavam juntas os debates para se pensar estratégias de enfrentamento e resistência.
Além disso, Heleieth foi orientadora de Conceição, essa que defendeu sua tese de doutorado no ano de 1974, na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP), e que seguiu sendo grande amiga de Heleieth por décadas.
Em sua trajetória enquanto pesquisadora, Saffioti dedicou-se muito a pensar nas relações de violência e poder, talvez porque suas vivências tenham trazido a ela o direcionamento para a compreensão das violências de gênero sofridas cotidianamente pelas mulheres. Em uma entrevista concedida à Mendes e Becker (2011), a autora relata que aos 14 anos era assediada todas as vezes que estava no ônibus público ou descia dele. Diz que com frequência colocavam a mão em sua perna ou simulavam esbarrar em seus seios “Alguns desses homens chegavam a descer do ônibus e ir atrás de mim. Eu aguentei um ano. Enfim, esse tipo de conduta não me agradava, tolhia minha liberdade e me infundia medo” (Saffioti).
Ela estudou violências de gênero nas ciências sociais de 1982 a 2010, e realizou uma pesquisa sobre abuso incestuoso, o qual demonstrou o quanto infelizmente nas relações de abuso pais biológicos e parentes próximos praticam tais abusos e como Saffioti afirmou o homem acaba destruindo seu próprio fruto. Em seu livro Gênero, patriarcado e violência, a socióloga mobiliza o conceito de poder e demonstra o quanto a distribuição deste é muito desigual em detrimento das mulheres (Saffioti, p. 35, 2004), colocando-as à margem, principalmente nas relações privadas onde o índice de violência é exorbitante, no sentido de que a lógica patriarcal perpetuou que mulheres são ‘amputadas’ sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder. Atrelado a isso está o fato de que mulheres são socializadas para terem comportamentos apaziguadores, dóceis, enquanto homens são incitados a condutas agressivas, perigosas e a demonstrar virilidade via suas ações. Tais reflexões alargaram as perspectivas e contribuíram para a construção de uma epistemologia feminista. Porém, uma das maiores contribuições de suas pesquisas se encontra na discussão do conceito de gênero, ao incorporar tal conceito às principais categorias sociais como trabalho, ideologia, reprodução esses que são fundamentais à teoria marxista.
As reflexões de Saffioti sobre o conceito de gênero foram além da relação com o patriarcado. Como ela mesma afirmou, o gênero acompanharia a humanidade desde sua existência, enquanto o patriarcado seria um fenômeno recente, particularmente articulado à industrialização do capitalismo. Segundo, porque o patriarcado diz respeito necessariamente à desigualdade e à opressão, sendo uma possibilidade dentro das relações de gênero, mas não a única (Saffioti, 2004). Tal temática ganhou tamanha centralidade no debate feminista, e pode-se considerar que a principal crítica da autora ao feminino que não leva em questão o patriarcado se concentra no fato de que, nos últimos milênios da história, as mulheres estiveram hierarquicamente inferiores aos homens. “Tratar esta realidade exclusivamente em termos de gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial como homem/marido, ‘neutralizando’ a exploração-dominação masculina” (Saffioti, 2004, p. 136).
A socióloga teve contato e experiências como pesquisadora em outros países como a França. Durante o ano de 1984, morou em Paris e ajudou o professor Ignacy Sachs, na Maison des Sciences de L’Homme [MSH]. Nesse período ficou amiga de Marie-Victoire Louis, que é uma referência nas discussões de violência na França e das sociólogas Helena Hirata e Danièle Kergoat que são grandes intelectuais e ativistas de discussões como a divisão sexual do trabalho e feminismo. Nesse período suas obras repercutiram muito entre intelectuais e militantes na França, pois havia muitas mulheres exiladas ou que estavam acompanhando seus maridos exilados. Com isso, o número de grupos feministas compostos por brasileiras era grande, permitindo assim que as obras de Saffioti tivessem maior visibilidade e aderência.
Cabe ressaltar também que no ano de 1995 a socióloga foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz por lutar pelos direitos das mulheres, juntamente com outras 51 brasileiras, iniciativa que partiu da organização suíça Mulheres pela Paz ao Redor do Mundo.
Sem dúvidas, Heleieth Saffioti foi uma figura central na pavimentação do caminho de uma sociologia marxista comprometida com a condição feminina na realidade brasileira. Saffioti alargou as estacas, sendo a primeira mulher a escrever um livro, dentro da academia, centrando sua análise na condição de dominação da mulher, demonstrando assim a relevância e complexidade de tal temática. Ela foi enfática na crítica do feminismo brasileiro que não tinha como horizonte a emancipação das mulheres, bem como não encarava o capitalismo como um dos principais rivais para que tal horizonte fosse alcançado, mas sim respondia aos interesses do capitalismo. Com isso, pode-se afirmar que ler os escritos de Saffioti torna-se fundamental para a compreensão da historiografia do feminismo brasileiro, afinal, ela foi uma pioneira que andou em caminhos sem estradas.
Obra
Bibliográfica y hemerográfica
- “Profissionalização feminina: professoras primárias e operárias”, Faculdade de filosofia, ciências e letras, Universidade de São Paulo, 1969.
- A mulher na sociedade de classes, Rio de Janeiro, Vozes, 1976. Tradução para o inglês: Women in Class Society, New York, Monthly Review Press, 1978.
- Emprego doméstico e capitalismo, Rio de Janeiro, Vozes, 1978.
- Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher: um estudo de operárias têxteis e de confecções no Brasil e nos Estados Unidos, São Paulo, Editora HUCITEC, 1981.
- Mulher brasileira: opressão e exploração, Rio de Janeiro, Editora Achiamé. 1984.
- Poder do macho, Rio de Janeiro, Editora Moderna.1987.
- Gênero, patriarcado, violência, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
Cómo citar esta entrada: Galetti, Camila (2021), “Saffioti, Heleieth”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org