LACERDA DE MOURA, Maria (Minas Gerais, Brasil 1887 – Rio de Janeiro, Brasil 1945).
Escritora anarquista-individualista tem uma obra feminista, antifascista, antivivisseccionista e pacifista, apresentada através de jornais, revistas, conferências e livros, de 1918 a 1944.
Maria Lacerda de Moura nasceu no dia 16 de maio de 1887, na fazenda Monte Alverne, próxima à Manhuaçu, em Minas Gerais. Filha de Modesto de Araújo Lacerda e de Amélia de Araújo Lacerda, mudou-se com a família em 1891 para Barbacena, cidade onde ela deu início aos seus estudos escolares. Em 1892 iniciou o curso primário no externato do Asilo de Órfãos, dirigido por freiras. Em sua Autobiografia nos conta que foi nesta escola que percebeu: “o espírito de classe, de casta e a injustiça com que os católicos estabelecem a diferença econômica […] no desprezo e exploração para com os pobres, os humildes e os de cor” (O Combate, 03 ago. 1929, p. 03). Seu pai era livre pensador, maçon e espírita, pequeno funcionário em Barbacena, , onde educou as filhas para serem professoras.
Os estudos de Maria Lacerda de Moura limitaram-se a uma escola primária no colégio de freiras e à Escola Normal Municipal, onde depois lecionou. Em 1904, formou-se normalista e iniciou a carreira docente no ensino primário aos 16 anos de idade. Desde cedo testemunhou conflitos entre as crenças espiritualistas e o ambiente católico e conservador da cidade. Tornou-se uma autodidata através de incansáveis leituras ecléticas e pelo contato por correspondência com professores e ativistas anarquistas e positivistas. Ainda em Barbacena conheceu José Oiticica e Fábio Luz com quem trocou correspondências e livros sobre a Educação Libertária. Neste contexto começou a ler sobre as propostas pedagógicas de Maria Montessori, Paul Robin, Sébastien Faure e Francisco Ferrer y Guardia, autores que influenciaram seu pensamento.
Casou-se, no dia 14 de janeiro de 1905, com o funcionário público Carlos Ferreira de Moura, com quem adotou duas crianças, a Carminda, uma órfã, e o Jair, um sobrinho. Para os filhos escreveu dedicatória em seu segundo livro, Renovação, publicado em 1919. Para o Carlos dedicou a obra A Mulher é uma degenerada, lançada em 1924. A obra teve, à época três edições, a terceira lançada em 1925 em Buenos Aires, na Argentina, foi intitulada La Mujer es uma degenerada?.
O livro teve grande sucesso e repercussão internacional ao contestar as teses pseudo.—científicas de Miguel Bombarda, de Cesare Lombroso e de Gugliemo Ferrero. Eles utilizavam argumentos biológicos para fundamentar uma suposta inferioridade intelectual, física e moral feminina. Ao descreverem o corpo feminino, sobretudo o útero, eles realizaram análises acerca de uma suposta inferioridade feminina. Articulando a emancipação feminina à emancipação do indivíduo no sistema capitalista industrial, conscientizava as alunas da sujeição das mulheres, através da educação, à família por imposição da Igreja e do Estado. Mostrou-lhes a necessidade de resistir ao papel exclusivo de procriadoras, de lutar pelos direitos à educação e à cidadania, à livre escolha de parceiro, e à maternidade consciente. Lembre-se que nas primeiras décadas do século XX os saberes sobre a vida privada eram vistos com desconfiança, repugnância e até repressão policial.
Em 1912, enviou suas primeiras crônicas para um jornal local. Entrou em conflito com seus familiares, assim que começou a publicar suas ideias, eles a censuravam pedindo moderação e reserva. Em 1919, após a publicação de Renovação, ela foi convidada para as primeiras conferências fora de sua cidade. Em 1920, discursou no centro da Federação Operária Mineira (FOM), em Juiz de Fora, e, em 1921, realizou uma conferência na cidade de Santos. Essas conferências possibilitaram contatos e facilitaram a sua saída de Barbacena. As restrições sofridas em Barbacena levaram-na a mudar-se em 1921 para São Paulo, que se industrializava, onde estabeleceu contato com anarquistas e comunistas.
Chegando em São Paulo estabeleceu contatos com o movimento associativo feminino, conheceu a sufragista Bertha Lutz (1894 – 1976), que, em 1919, fundou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, que a convidou para trabalhar em prol da educação das mulheres. Bertha, em 1922, representou as brasileiras na Assembleia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos, onde foi eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana. Ao regressar, criou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, que substitui a Liga, para encaminhar a luta pela extensão de direito ao voto às mulheres. Entre 1921 e 1922, Maria Lacerda presidiu a Federação Internacional Feminina, sendo pioneira ao propor a criação da disciplina de História da Mulher nas escolas, proposta que viria a efetivar-se algumas décadas depois de sua morte.
Em 1922, Maria Lacerda rompeu com os movimentos associativos feministas, que, para ela, estavam fundamentalmente preocupados com o sufrágio feminino, enquanto isso, ela entendia que a luta pelo direito de voto respondia a uma parcela muito limitada da população feminina e não alcançava as mulheres operárias. Tanto as novas alianças quanto o espiritualismo de suas crenças nunca significaram uma adesão incondicional aos grupos com que colaborou. Criou muita hostilidade ao preservar a liberdade de pensamento autônomo até morrer, porém, até o dia de sua morte refez alianças e não parou de estudar e de escrever. Em 1923 lançou a revista Renascença. Foi neste contexto que conheceu Ângelo Guido. A revista Renascença teve grande repercussão, era distribuída em nove estados do Brasil, na Argentina, através da colaboração de Júlia Garcia Cames, e, em Portugal, com apoio de Ana de Castro Osório. Era uma publicação com aproximadamente 30 páginas, a redação ficava situada na rua Visconde de Rio Branco, número 83, em São Paulo. Com a contribuição de Ângelo Guido, ela levou suas ideias para locais distantes, e o primeiro exemplar ficou esgotado em dois dias.
De 1921 a 1928 atuou em São Paulo, através de jornais e conferências, em associações operárias. Em 1926, ela conheceu André Néblind, através dele acolheu a obra do anarquista individualista francês Han Ryner. A obra de Han Ryner causou grande impacto na vida e na produção de Maria Lacerda. Em 1928 mudou-se para Guararema (SP), para uma comunidade de anarquistas individualistas, que vivia sem hierarquias entre trabalho manual e intelectual, entre patrões e mão de obra e entre homens e mulheres. Em Guararema ela construiu uma relação de amor e companheirismo com André Néblind até a data em que ele foi preso e deportado pelo governo de Vargas. Através dele trocou correspondências e recebeu os jornais libertários franceses, sobretudo, o L’EnDehors, o qual Émile Armand era colaborador, fortalecendo assim, suas leituras na perspectiva do anarquismo individualista. Deste grupo adotou a ideia da objeção de consciência, a recusa em matar e a perspectiva pacifista e estoica.
A sua experiência na comunidade rural possibilitou muito contatos com anarquistas de vários locais. Em Guararema viviam desertores da Primeira Guerra, sobretudo, espanhóis, franceses e italianos. Foi neste contexto que ela alavancou uma volumosa obra antifascista, antivivisseccionista e tornou-se vegetariana em defesa dos animais e do meio ambiente. Em 1929 foi convidada pela Liga Internacional do Magistério e pela Aliança Antifascista a fazer conferências na Argentina e no Uruguai. Em 1935, com a invasão da comunidade de Guararema, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou até a morte, trabalhando numa escola comercial, na Rádio Mayrink Veiga lendo horóscopos e ligada à Fraternidade Rosa Cruz, onde reencontrou o anarquista José Oiticica. Inspirada em Han Ryner, Tolstói, Gandhi, Romain Rolland, Helena Blavatsky ela não hierarquizava os conhecimentos, mas bebia de várias fontes para procurar as respostas para um mundo em chamas.
Em Barbacena foi mal vista pelas idéias avançadas e pelo anti-clericalismo. Em São Paulo, por sua recusa a participar dos conflitos entre os diferentes grupos que aspiravam à justiça social. Sua denúncia da invasão da imprensa brasileira pelo fascismo acarretou uma polêmica com os jornais italianos da colônia abastada e o empastelamento do jornal Il Piccolo. A invasão da comunidade de Guararema, em l935, obrigou-a a refugiar-se na Freguesia da Escada e a mudar-se para o Rio de Janeiro, depois de uma tentativa frustrada de voltar a Barbacena. A partir de então, um silêncio que se estendeu por aproximadamente cinqüenta anos, desceu sobre suas obras.
Nos anos 1980 as pesquisadoras Miriam Lifchitz Moreira Leite e Margareth Rago recuperaram parte de sua obra e trouxeram à luz seus escritos que haviam sido invisibilizados. Faleceu, na rua Mem de Sá, n. 215, apartamento 905, no Rio de Janeiro, no dia 20 de março de 1945. Sua última conferência, O Silêncio, foi pronunciada na Fraternidade Rosacruz Antiqua, na Tijuca, em 1944, onde discorreu sobre a obra de Pitágoras. Veio a falecer no ano seguinte, sem assistir ao fim da Segunda Guerra Mundial. Foi sepultada no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro.
Publicações periódicas que contaram com sua colaboração:
- Cidade de Barbacena
- O Corymbo (Porto Alegre)
- O Combate (São Paulo) coluna semanal
- Estúdios (Barcelona)
- Feira Literária (São Paulo)
- O grito operário (São Paulo)
- O Internacional (São Paulo)
- A Lanterna (São Paulo)
- O Operário (Juiz de Fora)
- A Palavra (São Paulo)
- A Plebe (São Paulo)
- Renascença (São Paulo) diretora
- Revista Blanca (Barcelona)
- Revista da Semana (Rio de Janeiro)
- A Tribuna (Santos)
- A Vanguarda (Rio de Janeiro)
- A Vida Moderna (São Paulo)
- Voluntad (Montevidéu)
- Voz do Povo (Rio de Janeiro)
Obra
- Em torno da Educação, São Paulo, Teixeira, 1918.
- Renovação, Belo Horizonte, Typ. Athene, 1919.
- A mulher é uma degenerada 1ª edição, São Paulo, Typ. Paulista, 1924. [4ª Edição, Fac-Simile, São Paulo, Tenda de Livros, 2018].
- «Carta à Fabio Luz, Barbacena, 18 nov. 1920», en Cartas de Arquivo, Rio de Janeiro, Fundo Fabio Luz – PN.0.0.151, Arquivo Nacional, 2018. 2 ed. Disponível em: http://www.arquivonacional.gov.br/br/ultimas-noticias/930-cartas-de-arquivo-2-edicao. Acesso em: 29 mar. 2020.
- Lições de Pedagogia, São Paulo, Typ. Paulista, 1925.
- Religião do Amor e da Belleza, São Paulo, Typ. Condor, 1926.
- “De Amundsen a Del Prete”, em O Combate, São Paulo, 1928.
- «Autobiografia», em O Combate n° 5110,São Paulo, 3 ago. 1929, p. 3.
- Civilização – tronco de escravos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1931. [Apresentação e organização Patrícia Lessa e Claudia Maia, 2ª edição, São Paulo, Entremares, 2020].
- Clero e Estado, Publicação da Liga Anti-Clerical, Rio de Janeiro, 1931.
- Amai… e não vos multipliqueis, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1932.
- Ferrer, o clero romano e a educação laica, São Paulo, Editorial Paulista, 1934.
- “Serviço militar obrigatório para a mulher? Recuso-me! Denuncio!”, em: A Sementeira, São Paulo, 1938.
- Han Ryner e o Amor Plural, São Paulo, Unitas, 1933.
- Clero e Fascismo – horda de embrutecedores, São Paulo, Editorial Paulista, 1934.
- Fascismo – filho dilecto da Igreja e do Capital, São Paulo, Editorial Paulista, 1935. [2ª edição, São Paulo, Entremares, 2018].
- Português para Escolas Comerciais, Rio de Janeiro, Munoz, 1940.
- “O silêncio”, em Fraternidade Rosa Cruz Antiqua, Rio de Janeiro, 1948.
- «Feminófobos y feminófilos», em Osvaldo Baigorria (org.), El amor libre, Buenos Aires, Libros de Anarres, 2006, p. 55 – 58, Disponível em: http://www.fondation-besnard.org/spip.php?article2942, Acesso em: 25 out. 2020.
- «Mães brasileiras, mulheres do Brasil! 19 de setembro de 1935», em Edgar Rodrigues (org.), Mulheres e anarquia, Rio de Janeiro, Achiamé, 2007, p. 19-23.
Apêndice e tradução
- Platão, Apologia de Sócrates, São Paulo, Editora Escala, s/d, p. 99 – 141.
Cómo citar esta entrada: Moreira Leite, Miriam (2020), “Lacerda de Moura, Maria”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org