HIRSZMAN, Leon (Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, 22/11/1937 – Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, 16/09/1987).
Cineasta filiado ao PCB, Leon Hirszman foi um dos principais nomes na consolidação da resistência cultural à ditadura brasileira. Pertencente ao Cinema Novo, em busca de uma arte que dialogasse com amplo público, o realizador dirigiu filmes que desnudaram, entre os anos 1960 e 1980, as profundas contradições enraizadas na formação social do país. Herdeiro do realismo crítico, materializando engajamentos políticos a cada obra, Hirszman encontrou na classe popular a essência de um processo criativo voltado para a constante luta contra o autoritarismo. Sem abrir mão do apuro estético, seja no campo do documentário ou da ficção, seu projeto de cinema vinculou-se organicamente às práticas de conscientização acerca dos desconcertos do mundo.
Nascido no ano de 1937, Leon Hirszman cresceu em um ambiente familiar marcado pelo encontro entre a religiosidade judaica e um humanismo crítico de origem marxista. Seus pais, Jaime e Sarah Hirszman, imigrantes poloneses que fugiram de seu país de origem devido à ascensão do nazismo e do antissemitismo, chegaram ao Brasil na década de 1930, instalando-se no subúrbio do Rio de Janeiro. Mascate, dono de uma sapataria em Vila Isabel, Jaime possuía uma visão laica do judaísmo, além de uma ligação política com o pensamento marxista, o que foi determinante para a sua aproximação com o Partido Comunista Brasileiro. Provavelmente sob influência paterna, Leon Hirszman filiou-se ao PCB quando alcançou 14 anos de idade.
Criado em um ambiente suburbano, algo que marcaria profundamente seus filmes, Hirszman cresceu envolto pela cultura carioca de origem média e popular. Primogênito de uma família que também era formada por mais duas crianças, suas irmãs Anita e Shirley, o futuro cineasta estudou o primeiro grau no colégio Scholem Aleichem, escola de linha judaica liberal e progressista, e o curso científico no Instituto Lafayette. Ainda que contrariado em seus desejos, uma vez que se interessava pelo cinema como profissão e lugar de expressão criativa, ingressou em 1956 na Faculdade de Engenharia da Universidade do Brasil (futura Universidade Federal do Rio de Janeiro).
O descompasso entre formar-se engenheiro e iniciar uma trajetória como artista marcou intensamente a juventude de Hirszman. Embora seguisse matriculado na universidade, sobretudo para agradar a mãe que desejava ao filho uma profissão de prestígio social, cada vez mais ele se aproximava do ambiente cinematográfico existente no Rio de Janeiro. Sob impacto determinante do filme Rio, quarenta graus (1955, Nelson Pereira dos Santos), que de certo modo inaugurava no cinema brasileiro um realismo crítico de engajamento marxista e nacional-popular, Hirszman lançou-se às práticas de criação artística. Em 1956, adentrando pela primeira vez em um set de cinema, participou das filmagens de Rio, Zona Norte (1957, Nelson Pereira dos Santos); em 1957, foi continuísta e assistente de direção no longa-metragem Juventude sem amanhã (de Elzevir Pereira da Silva e João César Galvão); e em 1958 esteve presente na fundação da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro. A essa altura, a universidade o estimulava mais pela atividade política e cineclubista do que pela possibilidade de um dia tornar-se engenheiro.
Por volta de 1960, dando prosseguimento a seu interesse pela militância política nas artes, Hirszman acompanhou de perto a temporada que o Teatro de Arena de São Paulo realizou no Rio de Janeiro. Além de participar dos Seminários de Dramaturgia organizados pela companhia teatral, o cineasta teve a oportunidade de assistir pela primeira vez à encenação de Eles não usam black-tie, peça escrita por Gianfrancesco Guarnieri que estimularia sua criação cinematográfica. A proposta dramatúrgica de Guarnieri, uma dentre as existentes no Teatro de Arena, apresentava semelhanças inequívocas com o filme Rio, quarenta graus: uma arte realista, organicamente atravessada por temáticas brasileiras, que posicionava, no centro das narrativas, os dilemas da classe popular como denúncia às (de)formações autoritárias do país. Para além disso, um fazer criativo marcado pela crítica social, com linguagem acessível a amplos públicos, a partir do qual a emoção construída em cena deveria estimular um salto de consciência política dos espectadores. Tal projeto, proposição para um engajamento artístico comunista, marcaria profundamente a trajetória de Hirszman.
Em meio à renovação cultural que vivia o Brasil do período, marcada pela busca por uma arte nova que articulasse pesquisas estéticas modernistas com a transformação revolucionária da sociedade, Hirszman ajustava seus ponteiros rumo a um cinema libertário e utópico. Sob o impacto da Revolução Cubana de 1959, emergia um fazer artístico marxista e anticolonialista, de compreensão e crítica das contradições sociais brasileiras, cujo intento passava pela convocação dos espectadores à práxis transformadora do mundo. Ainda no ano de 1960, com essa pedagogia estético-revolucionária no horizonte, Hirszman aproximou-se do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho com a finalidade de concretizar a montagem da peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar. Encenado em uma ampla arena localizada na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil, e contando com recursos audiovisuais selecionados por Hirszman, o texto de Vianinha propunha uma dramaturgia épica a explicar didaticamente o funcionamento das estruturas de dominação existentes na sociedade capitalista. A boa repercussão da peça, cuja direção ficou a cargo de Chico de Assis, estimularia o grupo a manter-se reunido em prol da criação de um coletivo artístico-revolucionário. Juntando-se também com o sociólogo Carlos Estevam Martins, à época ligado ao Instituto Social de Estudos Brasileiros (ISEB), meses depois eles fundariam o Centro Popular de Cultura.
Com uma origem que remonta ao segundo semestre de 1961, o CPC tinha como um de seus principais eixos o desenvolvimento de uma produção cultural marxista, nacional-popular, em compromisso com uma pedagogia crítica capaz de evidenciar os dilemas políticos existentes no país. A insatisfação de Vianinha com os rumos do Teatro de Arena, cujas encenações atingiam sobretudo um público de extração média e alta, se tornaria um questionamento comum ao grupo: para os articuladores do CPC, tratava-se de consolidar uma arte que alcançasse o sujeito histórico revolucionário por excelência, de classe popular, conscientizando-o politicamente. Somando forças em 1962 com a União Nacional dos Estudantes (UNE), que o acolheu oficialmente como seu órgão cultural, o CPC do Rio de Janeiro lançou-se a uma produção múltipla que incluiu teatro, cinema, música popular, artes plásticas, poesia e publicações variadas acerca da realidade social brasileira. Em meio a esse caudal de repertórios didáticos e engajados, que incluía shows musicais e encenações de peças no espaço público do Rio de Janeiro, Hirszman tornou-se o responsável por formular uma proposta atrelada ao campo cinematográfico.
Na passagem entre os anos de 1961 e 1962, desempenhando o trabalho que tinha em mãos, o cineasta concretizou aquele que se tornaria o seu principal projeto cepecista: o longa-metragem Cinco vezes favela. Reverberando a influência de Rio, quarenta graus e de Eles não usam black-tie em sua trajetória, obras que propunham reflexões críticas em torno dos dilemas populares nos morros cariocas, Hirszman propôs a realização de um filme a reunir cinco breves narrativas que se voltavam para a dura vida de personagens favelados. Com o objetivo de evidenciar as mazelas e contradições sociais, fazendo do realismo cinematográfico um caminho para a conscientização, ele convidou para o projeto um núcleo de jovens diretores que compartilhavam o anseio por uma arte revolucionária. Carlos Diegues, Marcos Farias, Miguel Borges e o próprio Hirszman ficariam responsáveis por dirigir quatro episódios. Já o quinto acabaria sendo um curta realizado anteriormente por Joaquim Pedro de Andrade (em 1960), incorporado como parte do conjunto fílmico Cinco vezes favela.
O episódio feito por Hirszman, sua estreia na direção de filmes, é uma alegoria épico-revolucionária, com mise en scène de inspiração einsensteiniana, na qual materializa-se o triunfo da classe popular sobre o opressor capitalista. Opondo-se aos planos do ganancioso gerente de uma pedreira, trabalhadores e favelados unem-se para impedir explosões excessivas de dinamite que poderiam colocar em risco a vida dos moradores de um morro carioca. Em Pedreira de São Diogo, ato primeiro da obra autoral de Hirszman, despontam elementos que retornariam continuamente em seu cinema político: a representação crítica do mundo do trabalho, a resistência do povo contra as estruturas de dominação, uma narrativa a evidenciar a luta de classes no interior da sociedade brasileira.
A despeito dos esforços mobilizados para a realização de Cinco vezes favela, cujas filmagens se deram em meio à precariedade financeira, o filme acabaria fracassando em sua pretensão de alcançar um amplo público de extração popular. As intenções por trás da obra, no sentido de mobilizar pedagogias críticas por meio do cinema, esbarrariam em um mercado de exibição pouco interessado na comercialização de filmes brasileiros voltados para o engajamento político. A restrita circulação social do longa-metragem, exemplo das dificuldades que o CPC enfrentou para a difusão popular de suas produções culturais, não deve, no entanto, diminuir o impacto histórico de Cinco vezes favela. Ainda que o filme fosse pouco efetivo como instrumento para a conscientização das massas, sua realização acabaria tornando-se um dos marcos inaugurais do movimento artístico conhecido como Cinema Novo.
Em paralelo à existência do CPC, o início dos anos 1960 também foi palco para o nascimento de um projeto cultural que alteraria estruturalmente os rumos da história do cinema brasileiro. Por meio de uma postura anticolonialista, em refutação às heranças burguesas e carnavalescas de nosso audiovisual, o Cinema Novo eclodiu como proposta de refundação da cinematografia nacional a partir de uma cultura política de viés marxista. Propondo-se à consolidação de experiências estéticas modernistas e autorais, em convergência com o realismo literário de nomes como Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego, o movimento cinematográfico lançou-se a uma produção independente voltada para filmes de reflexão crítica em torno da realidade nacional. Encabeçado por jovens realizadores como Glauber Rocha, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Ruy Guerra, o Cinema Novo articulou um projeto artístico no intervalo entre o engajamento ideológico e a pesquisa formal, materializando uma renovação criativa que despontou internacionalmente como exemplar da cultura libertária existente na América Latina da década de 1960. Ao lado dos filmes Vidas Secas (1963, Nelson Pereira dos Santos), Os fuzis (1963, Ruy Guerra) e Deus e o diabo na terra do sol (1964, Glauber Rocha), Cinco vezes favela despontaria como uma das obras fundamentais desse movimento.
No trânsito entre pertencer ao CPC e ao Cinema Novo, buscando uma síntese da militância pedagógica com a estética revolucionária, Hirszman encontrou os rumos de seu início no campo artístico. Sob o manto dessa dupla filiação, entre 1963 e 1964 ele realizou seu primeiro documentário, o curta-metragem Maioria absoluta. Investigação crítica em torno das estruturas de dominação existentes no sertão brasileiro, também uma denúncia da alienação presente na elite carioca, o filme se estruturaria como um gesto político no sentido de evidenciar a tragédia social vivida pela classe popular no interior da Paraíba. Apostando em uma soma de forças entre falas de origem camponesa e uma narrativa pedagógica conduzida pelo poeta Ferreira Gullar, a primeira como exposição da miséria e a segunda como análise comunista do mundo, Maioria absoluta evidencia a crença em um frentismo político que estimularia Hirszman no decorrer de toda a sua vida. Integrante do PCB, o cineasta nunca abdicaria das aproximações orgânicas entre a luta popular e o saber da intelectualidade esclarecida como caminho para a confrontação do autoritarismo.
Em decorrência do golpe civil-militar ocorrido no dia primeiro de abril de 1964, que implantou no Brasil uma ditadura com duração de 21 anos, muitas crenças políticas que até então mobilizavam a esquerda cultural sofreriam um duro processo de desmonte. A arte revolucionária que vinha sendo produzida desde a segunda metade dos anos 1950, em boa parte atravessada por uma teleologia na qual a classe popular era representada de modo politicamente triunfal, entraria em crise face a um contexto histórico onde a extrema direita passava a ocupar violentamente o poder. Tal fratura não se originava apenas dos fracassos relacionados ao engajamento, incapaz de concretizar na realidade social um projeto transformador de linha socialista, mas também da impossibilidade de prosseguir com representações otimistas diante de um país que enveredava para um novo ciclo autoritário. Enquanto o CPC encerraria abruptamente as suas atividades, sobretudo devido ao incêndio criminoso que destruiu o prédio onde funcionava, o Cinema Novo passaria à realização de filmes melancólicos nos quais a crise do projeto utópico se tornaria questão dominante. No decorrer dos anos 1960, Hirszman prosseguiria em sua trajetória, dirigindo obras de reflexão sobre as fraturas políticas e sociais, mas sem deixar de mobilizar um pensamento crítico voltado para a denúncia das contradições brasileiras.
Alguns meses após o golpe civil-militar, Hirszman receberia um convite para realizar o filme que se tornaria sua primeira experiência na direção de longas-metragens. Diante do interesse de Nelson Rodrigues em adaptar suas peças para o cinema, o realizador foi procurado com o intuito de levar para as telas o texto Nossa Senhora dos Afogados. Por tratar-se de uma peça com dramaturgia de viés mítico, algo distante do universo criativo do cineasta, ele convenceria Rodrigues a aceitar a adaptação de outra obra, A falecida, cuja narrativa possuía uma convergência maior com a ficcionalidade realista. O enredo em torno da personagem Zulmira, consumida pelas pressões de uma sociedade machista que exige das mulheres perfeccionismo moral, abria para Hirszman a possibilidade de prosseguir com os caminhos de um cinema engajado.
Reforçando o repertório realista presente de modo secundário no texto original de A falecida, sobretudo a partir da ampliação de situações dramáticas relacionadas à vida nos subúrbios cariocas, o longa-metragem dirigido por Hirszman propunha uma leitura política dos sofrimentos enfrentados por Zulmira. A obsessão da personagem pela morte, o que a leva a preparar detalhadamente o próprio enterro, desvela-se no filme como resultado de um estilhaçamento subjetivo provocado pelos valores patriarcais do meio social. Em um país conservador, no qual o decoro e o matrimônio tornam-se modelos de positivação do universo feminino, a protagonista de A falecida encontra-se corroída pela culpa e pelo temor de ser considera pelos outros imperfeita. Descoberta pela prima no ato de traição ao marido, incapaz de ajustar sua existência às submissões pequeno-burguesas, ela vive em estado constante de desorientação. Ao planejar para si um enterro luxuoso, sabendo que no Brasil a ostentação material se torna sinônimo de valorização social, Zulmira constrói uma estratégia para que sua morte conduza a comunidade a considerá-la mulher moralmente superior. Diante de um velório suntuoso, os olhares se convenceriam de que jaz, no caixão, uma defunta irreprovável. Não fosse refém de todas essas pressões, não estivesse sequestrada pela obsessão de transmitir uma imagem perfeita de si, talvez a personagem encontrasse a felicidade possível. Em A falecida de Hirszman, as contradições de gênero e de classe no interior da sociedade brasileira, evidenciadas no tecido fílmico, impedem a soltura do existir. Posta em cena, a crise de Zulmira desdobra-se como denúncia política ao autoritarismo.
Em 1966, no ano seguinte à finalização de A falecida, Hirszman decidiu ampliar a sua atuação no campo cultural brasileiro. Para além de seguir adiante como diretor de filmes, ele se lançaria à função de produtor cinematográfico. Logo após retornar de uma temporada no Chile, onde viveu durante alguns meses, o cineasta se uniria a Marcos Farias para a compra de uma produtora até então pertencente a Joaquim Pedro de Andrade. À frente da Saga Filmes, os dois associaram-se a uma série de obras cinematográficas a partir de empréstimos de equipamentos, de créditos para laboratório ou por meio de capital investido nas películas. Entre 1966 e 1968, a empresa participou, geralmente de modo parcial, da concretização de longas-metragens como Todas as mulheres do mundo (1967), de Domingos Oliveira, Perpétuo contra o esquadrão da morte (1967), de Miguel Borges, Capitu (1968), de Paulo Cezar Saraceni, e O bravo guerreiro (1968), de Gustavo Dahl. Posteriormente, devido às preocupações em alcançar o público com filmes de gênero que possuíssem tonalidade crítica, a Saga Filmes investiu esforços na produção de obras de cangaço como A vingança dos doze (1970), dirigida por Marcos Farias, e Faustão (1971), uma realização de Eduardo Coutinho.
Na segunda metade dos anos 1960, as dificuldades relacionadas à circulação social do cinema brasileiro, sobretudo aquelas enfrentadas por obras de viés político, tornaram-se uma inquietação central na trajetória de Hirszman. Disposto a realizar filmes que se comunicassem criticamente com os espectadores, compromisso do qual nunca abriria mão, o cineasta amargava o duplo fracasso oriundo das exibições comerciais de Cinco vezes favela e A falecida. Na tentativa de virar o jogo, algo que explica parte dos investimentos assumidos pela Saga Filmes, Hirszman resolveria dirigir um longa-metragem que possuísse maior apelo de público sem abrir mão de componentes relacionados à análise política e social de seu tempo. Tal convergência de interesses, entre a perspectiva comercial e a crítica ideológica, encontra-se na origem do longa-metragem Garota de Ipanema (1967).
A partir de um roteiro escrito em parceria com Glauber Rocha, Vinícius de Morais e Eduardo Coutinho, este último retornando à mesma função que ocupara em A falecida, o filme Garota de Ipanema propunha um diálogo aberto com a efervescência musical presente no Rio de Janeiro do período. Ao modo de um romance de formação existencial, centrado na juventude carioca de alta classe, a narrativa do longa-metragem acompanha um período de férias escolares vivido pela personagem Márcia, figura dramática que se encontra em descompasso com o mundo social que a cerca. Entre as comemorações de final de ano e o carnaval, tempo de aproveitar os amores e as curtições de verão, Márcia desponta como um corpo melancólico em dissonância com os valores provenientes do universo burguês. Sem perder de vista o humor e as paqueras, o filme evidencia as crises enfrentadas por sua protagonista, buscando desmistificar a imagem dourada que povoa as representações da juventude presentes na mítica canção “Garota de Ipanema”. Atravessada pela tristeza, ainda que reluzente, Márcia aventura-se na busca por um sentido outro para a sua vida. Ao mesmo tempo em que apresenta essa jornada íntima, dotando-a de reflexão política e geracional, o filme de Hirszman abre-se ao registro afetivo e apaixonado da cultura musical carioca. Recheado por performances de Nara Leão, Baden Powell, Chico Buarque, Vinicius de Morais e Ronnie Von, num percurso eclético que vai da Bossa Nova à Jovem Guarda, Garota de Ipanema concretiza-se como uma obra em trânsito inconstante entre promover distanciamentos críticos e celebrar a alegria da juventude. Proposta criativa de difícil execução, o resultado desse meio-termo acabaria desagradando ao próprio Hirszman, que mais uma vez realizava um filme com pouca acolhida no mercado exibidor.
Algum tempo depois, após passar pela pulsão de morte em A falecida e pela melancolia em Garota de Ipanema, Hirszman realizou o filme mais inusitado de seu percurso. No ano de 1969, em um contexto histórico de agravamento da ditadura militar e de aprofundamento das crises políticas, o cineasta dirigiu Sexta feira da Paixão Sábado de Aleluia, episódio pertencente ao longa-metragem América do sexo. Por meio de um processo criativo improvisado, no qual intérpretes criavam falas e gestos a partir de objetos pessoais, o curta-metragem trata especialmente das dificuldades de interação humana em um cenário de colapso das utopias. O estranhamento colocado em cena, reforçado pela escolha de paisagens áridas, parece evocar as desorientações de uma geração cuja existência encontrava-se no limiar entre a supressão democrática e as expectativas libertárias associadas ao sexo e às drogas. Único de seus filmes a esboçar aproximações com o cinema marginal, Sexta-feira da Paixão… acabaria refutado pelo próprio Hirszman.
Por outro lado, em meio aos avanços das crises estruturais e pessoais, Hirszman também realizou em 1969 outro curta-metragem que marcaria seu reencontro com o universo suburbano do Rio de Janeiro. Artista que procurou construir um vínculo orgânico com a classe popular, colocando-a no centro de suas obras como materialização da resistência política e cultural, o cineasta retornava às origens de seu projeto criativo a partir da realização do filme Nelson Cavaquinho. Perfil íntimo e social desse grande compositor carioca, cuja presença em cena traduz melancolias e alegrias da vida popular, o documentário encontra-se atravessado pelo tratamento sensível que Hirszman sempre conferiria ao samba em sua produção artística. Expressão enraizada nos morros e subúrbios, cancioneiro a manifestar agruras e paixões, o samba aparece na obra do cineasta como vínculo musical comunitário de um povo submetido às violências e deformações autoritárias brasileiras. Filmado no interior de sua casa e no convívio com a vizinhança, Nelson Cavaquinho representa uma voz coletiva que povoa o imaginário da comunidade, materializando a poesia que existe como resistência criativa dos oprimidos.
No ano de 1972, Hirszman retornaria à direção de longas-metragens, dessa vez envolvendo-se com a adaptação de S. Bernardo, romance homônimo escrito por Graciliano Ramos. Com uma produção marcada pela escassez de recursos financeiros, o filme narra a trajetória de Paulo Honório, homem de origem pobre que se transforma em poderoso coronel alagoano. Disposto a dissecar criticamente o autoritarismo existente no campo, a desnudar as violências coronelistas no auge do regime militar, Hirszman se voltou para a realização de uma obra cujo protagonista, a despeito da procedência popular, converte-se em figura de opressão a reproduzir perversões relacionadas ao patriarcalismo brasileiro. Na antítese do aprendizado crítico, longe de transformar as agressões que sofreu em consciência política, Paulo Honório materializa no filme um personagem que ao ascender socialmente, ao tornar-se grande proprietário de terras, acaba incorporando como legítimos os valores patrimonialistas que o cercam.
Em um contexto histórico de aniquilamento dos projetos libertários, no qual vivia-se um agudo esvaziamento revolucionário, S. Bernardo posiciona em cena a tragédia política brasileira ao representar uma figura de origem popular cooptada pelo poder econômico. A aposta cega de Paulo Honório na hierarquia patrimonial, sua crença de que o mundo deve submeter-se aos que detêm domínio político e material, o transforma em homem autoritário que mercantiliza todas as relações sociais. Para ele, que conquistou um lugar na elite rural, os outros devem submeter-se aos seus desejos. Refém da opressão que reproduz, lançando mão da violência para que o obedeçam, o personagem naturaliza o coronelismo como instância de poder. A despeito disso, em meio à submissão generalizada dos que o rodeiam, Paulo Honório depara-se com um foco de resistência. Sua esposa Madalena, professora de espírito livre e humanista, não aceita render-se à condição de posse material do marido. O terrível conflito que daí decorre, reação ao patriarcalismo de Paulo Honório, desenvolve-se em S. Bernardo como tragédia inevitável. Sob forte desgaste, agredida continuamente pelo companheiro e incapaz de modificá-lo, Madalena suicida-se. O abalo sentido com a morte da esposa, no entanto, não modifica a visão de mundo do protagonista.
Ao fazer um balanço de sua vida, ele adquire lucidez sobre o mal que representa, sobre as próprias perversões, mas ao mesmo tempo percebe a impossibilidade de abandonar os valores cruéis que o sustentam como ser.
S. Bernardo, obra-prima de Hirszman em diálogo com a dramaturgia brechtiana, disseca a figura do opressor para a exposição crítica dos mecanismos autoritários presentes no coronelismo brasileiro.
Devido ao seu conteúdo político, S. Bernardo desagradaria os agentes da censura a serviço do regime militar. Impondo a supressão de algumas cenas presentes no filme, sobretudo aquelas que explicitavam a violência coronelista, a repressão exigia de Hirszman cortes que modificariam estruturalmente seu longa-metragem. Diante da violência de Estado que ameaçava despedaçar S. Bernardo, tornando sua narrativa incompreensível, Hirszman optou por confrontar a Censura por meio de um processo jurídico que ocorreria no ano de 1973. A vitória do realizador contra os abusos ditatoriais, possibilitando o lançamento integral do filme no circuito exibidor, viria, no entanto, acrescida de novas amarguras. Os problemas econômicos já existentes na Saga Filmes, somados às dívidas que se agravavam devido aos atrasos na comercialização de S. Bernardo, tornariam insustentável a manutenção da empresa produtora. A sua falência, concomitante à circulação da obra-prima de Hirszman, traria consequências diretas na futura trajetória do cineasta.
Impedido judicialmente de acessar recursos públicos para o financiamento de suas obras, restrição referente às dívidas não pagas da Saga Filmes, o realizador precisou encontrar rumos alternativos para a sua sobrevivência financeira. Nos anos subsequentes, um desses caminhos seria a realização de filmes sob encomenda. Em 1974, além de trabalhar com comerciais, Hirszman foi contratado pelo produtor Luís Fernando Goulart, da Terra Filmes, para a direção de dois curtas-metragens financiados pelo Instituto Nacional de Cinema (INC). Documentários pedagógicos, de estrutura narrativa tradicional, Megalópolis e Ecologia são filmes propositalmente didáticos nos quais analisam-se os efeitos perversos da industrialização sobre o mundo. A crítica ao poder econômico, cujos descontroles diminuem a qualidade de vida e aniquilam os recursos naturais do planeta, desponta nos curtas-metragens como denúncia à modernização inconsequente do capitalismo avançado. Ainda que dirigidos sob encomenda, os filmes proporcionavam a Hirszman a manutenção de seu olhar crítico em relação ao tempo contemporâneo.
Entre 1975 e 1976, dessa vez sob patrocínio do Ministério de Educação e Cultura, o cineasta conseguiu realizar uma trilogia de filmes intitulada Cantos de trabalho no campo. Propondo uma aproximação com o cinema de herança etnográfica, marcado pela observação minuciosa da vida e da cultura popular, Hirszman voltou as suas câmeras para o registro dos cânticos entoados por camponeses no interior de Alagoas e da Bahia. Oriundas da tradição oral, com uma ancestralidade que remete à expressão poética dos escravos no Brasil colonial, as canções presentes nos curtas-metragens materializam uma musicalidade construída coletivamente pelo povo durante as difíceis jornadas de trabalho no campo. Manifestação de resistência, ato criativo que emerge a despeito do opressor, a música camponesa, somada à dança, atravessa os filmes como voz comunitária que dá força aos corpos durante a extração do cacau e da cana-de-açúcar ou no decorrer de um mutirão para construir casas populares. Nesse conjunto de documentários dirigidos pelo cineasta, os cânticos sobrevivem por meio da memória audiovisual.
Dando continuidade ao compromisso ideológico presente nos Cantos de trabalho, Hirszman também realizou em 1976 as filmagens que originariam o documentário Partido alto. Finalizado apenas no ano de 1982, quando o cineasta conseguiu verbas para terminar seu filme, o curta-metragem marcaria um novo encontro de Hirszman com a musicalidade de origem popular. A partir de filmagens realizadas nas casas de Candeia e Manacéa, nas quais destaca-se o samba de raiz como expressão comunitária do povo, Partido alto materializa um discurso político de resistência em prol das manifestações artísticas consideradas originalmente brasileiras. Os registros afetivos das rodas musicais, da potência criativa de sambistas que sonorizam e improvisam seus versos, apresentam-se no filme não apenas como testemunho documental de nossas riquezas culturais, mas também como voz poética sob risco de extinção em decorrência dos avanços da indústria de entretenimento. Em Partido alto, a vitalidade e o temor frequentam os sons e as imagens. A força lírica e coletiva que provém do povo, fonte da identidade formadora do país, deve lutar para não sucumbir diante das pressões oriundas da modernização capitalista. Tópico tão presente no cinema de Hirszman, a valorização da cultura nacional-popular brasileira reapareceria em 1978 no curta-metragem Rio, carnaval da vida.
Entre 1976 e 1977, ainda enfrentando a necessidade de trabalhar sob encomenda, Hirszman dirigiu o único programa televisivo de seu percurso artístico. Procurado por representantes da emissora Radiotelevisione Italiana, o cineasta aceitou o desafio de realizar um episódio para a série Inchiesta sulla cultura latinoamericana, dando início à produção de um telefilme documental acerca das inúmeras contradições existentes no Brasil. Obra desaparecida, provavelmente perdida em um incêndio ocorrido nos arquivos da RAI, Que país é este? foi realizado em parceria com Zuenir Ventura, à época um dos principais jornalistas dedicados às reflexões sobre a resistência cultural no período da ditadura. Pensado como uma espécie de contra-hegemonia televisiva, em oposição aos discursos euforizantes que o regime militar espalhava nos meios de comunicação, Que país é este? propunha uma narrativa documentária em torno da trajetória do Brasil, recontando criticamente acontecimentos históricos que iam do Descobrimento aos tempos contemporâneos. A partir de entrevistas com intelectuais que se posicionavam em defesa da democracia, caso de Fernando Novais, Sérgio Buarque de Holanda, Alfredo Bosi, Maria da Conceição Tavares e Fernando Henrique Cardoso, o programa de Hirszman engajava-se em uma reconstituição histórica na qual o autoritarismo era denunciado como violência estruturalmente presente na sociedade brasileira. Intercalados com fragmentos de filmes e de peças que remontam às tradições do realismo, os depoimentos apontavam para uma leitura crítica na qual a classe popular, submetida por séculos à agressão sem fim, emergia também como força inabalável de luta contra a opressão. Para além do habitual elogio à potência do povo, aspecto tão recorrente na obra do cineasta, Que país é este? trazia uma novidade. Pela primeira vez em seu cinema, Hirszman esboçava um viés mais pragmático de resistência à ditadura, aproximando-se da ideia de um amplo frentismo político em prol da redemocratização do Brasil. Artista ainda filiado ao PCB, em contato estreito com o partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ele introduziria, no seu programa televisivo, a aposta em uma união plural de agentes sociais como perspectiva para a vitória contra o regime militar. Tal projeto político, a reunir oposicionistas de vários espectros ideológicos, é fundamental para compreender os próximos filmes realizados pelo cineasta.
Alguns meses após a finalização de Que país é este?, Hirszman finalmente conseguiu se livrar dos problemas jurídicos relacionados a S. Bernardo. Diante desse horizonte, que lhe permitia concorrer novamente a subsídios públicos para seus filmes, o cineasta iniciou a realização de um projeto que acalentava há anos: adaptar para as telas a peça Eles não usam black-tie. No começo de 1979, durante os preparativos para seu novo longa-metragem, Hirszman seria, no entanto, pego de surpresa pela ebulição política envolvendo a classe operária brasileira. Em março daquele ano, em meio aos primeiros passos para a redação do roteiro de Black-tie, o sindicalismo metalúrgico localizado no ABC paulista iniciou uma greve de grandes proporções a questionar o pacto autoritário que envolvia a ditadura militar e a elite industrial fabril. Face ao advento histórico de um operariado combativo, no qual consolidava-se a liderança de Luís Inácio Lula da Silva, o cineasta sentiu a necessidade de interromper momentaneamente a produção de Black-tie para realizar um documentário que acompanhasse de perto a greve que se desenrolava. Determinado a se aproximar do “novo sindicalismo”, a envolver-se com a luta que conduzia milhares de metalúrgicos às ruas, Hirszman montou uma pequena equipe em parceria com a produtora Taba Filmes, lançando-se ao centro da rebeldia popular que explodia no Brasil de então. Em se tratando de um artista sem vínculos concretos com a militância operária, mas que pretendia adaptar uma peça voltada justamente à resistência sindical, tais filmagens poderiam servir como obtenção de conhecimento acerca das novas resistências de base que emergiam dentro do país.
Em ABC da greve, a partir de entrevistas e de um estilo sobretudo observacional, Hirszman documenta o desenrolar da luta entre classes no Brasil. Também apoiando-se em uma narração conduzida por Ferreira Gullar, que oferece informações gerais sobre o país e as mobilizações políticas de base popular, o longa-metragem acompanha cronologicamente, entre março e maio de 1979, a grande greve que paralisou a produção metalúrgica na região do ABC paulista. Projeto fílmico nascido em decorrência das urgências do contemporâneo, a propor uma memória audiovisual em torno da rebeldia operária, ABC da greve registra em detalhes a mobilização do “novo sindicalismo” em prol de direitos trabalhistas e de melhores perspectivas de vida. Ao lado de outros filmes do período, caso de Braços cruzados, máquinas paradas (Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Segall, 1978) e Linha de montagem (Renato Tapajós, 1982), o documentário de Hirszman denuncia a superexploração enfrentada pelo operariado paulista, evidenciando seus esforços combativos no sentido de resistir à situação opressiva existente no regime autoritário. Como antes em Que país é este?, o cineasta posiciona-se explicitamente contra a ditadura militar, desmontando os artifícios utilizados pela elite para esvaziar a greve como instrumento legítimo dos trabalhadores. Atravessada por intensos conflitos sociais, a filmagem dos acontecimentos salienta a emergência de um novo personagem histórico em meio às expectativas pela redemocratização do Brasil. A manifestação política oriunda da classe popular, algo que lhe confere expressão e dignidade, rebenta na tela como força coletiva em resistência ao autoritarismo.
Embora realizado em resposta às emergências do tempo presente e com o intuito inicial de engajar-se na luta operária, ABC da greve demoraria mais de uma década para ficar pronto. Por razões inúmeras, dentre as quais a falta de verbas e o envolvimento com a pesada produção de Black-tie, o cineasta terminaria a montagem do documentário em 1980, mas deixaria em suspenso a sua derradeira conclusão. Apenas no ano de 1991, a partir de um projeto de finalização encabeçado pela Cinemateca Brasileira, o público passaria a conhecer o resultado definitivo de ABC da greve. Feita por Hirszman em parceria com Adrian Cooper, a edição do filme revelaria, na esteira de Que país é este?, mais uma manifestação do cineasta em convergência com o frentismo político como aposta para combater a ditadura. Na versão final do longa-metragem, o protagonismo operário compartilha espaços de resistência com outras expressões oposicionistas do período – o MDB, os artistas engajados ou os juristas progressistas –, evidenciando o lugar ideológico de Hirszman na luta contra o regime militar.
Finalmente, após as filmagens das greves metalúrgicas, Hirszman voltaria todos os seus esforços para a realização de Eles não usam black-tie. Disposto a adaptar para as telas uma peça escrita por Gianfrancesco Guarnieri em 1956, num contexto histórico anterior ao golpe civil-militar, o cineasta uniu-se ao dramaturgo com o intuito de atualizar seu texto teatral em relação às questões existentes no início dos anos 1980. Duas décadas e meia após a redação da peça, diante de um país que fora subjugado pela ditadura e assitira à destruição de seus projetos libertários, tornava-se impossível, na opinião de ambos, a adaptação literal de um texto cuja narrativa encontrava-se impregnada por antigas teleologias revolucionárias de esquerda. Face aos novos tempos, ajustes faziam-se necessários. Na versão cinematográfica de Black-tie, os conflitos ideológicos e pessoais que irrompem dentro de uma família operária, outrora perpassados pela celebração utópica da luta popular, adquirem novos sentidos relacionados à supressão da democracia durante o regime militar. No filme, as leituras políticas sobre o país, assim como as disputas que envolvem Otávio, líder sindical, e seu filho Tião, jovem iludido por crenças liberais, surgem atualizadas para uma realidade social atravessada pela violência autoritária.
Distanciando-se da teleologia encontrada na peça, na qual a luta operária consagra-se vitoriosa, o Black-tie cinematográfico evidencia o esgotamento contemporâneo ao representar a derrota do movimento grevista face às forças políticas de repressão. Ao acrescentar à narrativa original o assassinato de três personagens pertencentes à classe popular, situando a tragédia como dado sensível para pensar o Brasil dos anos 1980, Hirszman materializa em seu filme a brutalidade desferida contra populações periféricas durante os anos ditatoriais. Reféns da elite industrial e do terrorismo de Estado, os operários não encontram forças coletivas para sobrepujar seus opressores. Em contraste à peça de Guarnieri, na qual pulsa otimismo revolucionário, o filme expõe as angústias enfrentadas pelo povo em um cenário de fratura social. O próprio movimento operário, que no texto de 1956 aparece como potência una e heróica para a transformação do mundo, ressurge no Black-tie fílmico fragmentado por dissonâncias, cindido entre o confronto imediato contra o patronato ou a gradual organização das bases para um momento mais oportuno de ação.
A despeito de todas as contradições presentes no longa-metragem de 1981, da tragédia social que envolvia o país, é fundamental ressaltar que o Black-tie de Hirszman de modo algum resigna-se a discursos melancólicos ou derrotistas. Ao manifestar a fratura da nação, os efeitos do autoritarismo ainda no poder, o filme evidencia as angústias do tempo presente, acreditando em um reposicionamento futuro da classe popular como força de oposição capaz de enfrentar a ditadura. As duras críticas que o longa-metragem dirige ao setor operário considerado inconsequente e insurrecional, ao contrário de anunciar desistências políticas, atravessam a narrativa como lição a ser apreendida com o intuito de melhor organizar as bases populares rumo à luta pela redemocratização brasileira. Por meio de um viés ideológico pecebista, Hirszman refuta a antiga onipotência utópica presente na peça de Guarnieri, dimensão vista pelo cineasta como falsamente heroica, posicionando-se em defesa de um frentismo político necessário para a superação do luto nacional. Não à toa, nos minutos finais do Black-tie fílmico, em meio às tristezas pelo assassinato do operário Bráulio, um cordão popular eclode na rua como representação da incansável luta que nunca há de cessar. Tal qual manifestara nos documentários Que país é este? e ABC da greve, o cineasta povoa o campo ficcional com a crença na união de forças como resistência ao regime militar.
A partir de um estilo realista, em negociação com heranças melodramáticas, Black-tie marcou o esforço de Hirszman em realizar um longa-metragem que se comunicasse com amplas camadas de público. Tornando-se o ápice de um projeto artístico acalentado desde a juventude, relacionado à busca por uma arte política de ampla circulação social, o filme contou com intérpretes nacionalmente conhecidos por seus trabalhos televisivos, caso de Fernanda Montenegro, Bete Mendes, Carlos Alberto Riccelli ou do próprio Guarnieri. Fazendo da emoção um caminho para a conscientização crítica, Black-tie se tornaria não apenas um sucesso de bilheteria, mas sobretudo um filme a espelhar sentimentos da sociedade brasileira em relação ao esgotamento autoritário e à defesa da redemocratização. Ao tratar do peso que incide sobre o presente, a obra apontava caminhos e desejos para a reconstrução futura do país.
Em exibição nas salas brasileiras de cinema a partir de setembro de 1981, Black-tie consagrou publicamente o nome de Hirszman. Para além do reconhecimento nacional, o filme seria acolhido entusiasticamente em competições internacionais de cinema, a exemplo do Festival de Veneza, onde em 1981 recebeu três prêmios, ou do Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana (Cuba), em que foi agraciado, no mesmo ano, com o Grande Prêmio Coral. Na esteira do sucesso alcançado por Black-tie, Hirszman viajou em 1983 para a cidade de Roma (Itália), ocasião na qual registrou, em parceria com Paulo Cezar Saraceni, os bastidores de um grande festival de música dedicado à canção brasileira. Adiada por muitos anos em decorrência de problemas financeiros, a edição do material resultaria no documentário Bahia de todos os sambas (1983-1996), uma obra afetiva, de clima cultural celebrativo, a capturar conversações e performances levadas a cabo por Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Gilberto, entre outros.
Dando prosseguimento à sua atuação artística, nos anos seguintes Hirszman se dedicou à realização de um projeto cinematográfico que, infelizmente, acabaria sendo o último de sua vida. Composta por documentários dirigidos entre 1983 e 1986, a trilogia Imagens do inconsciente tornou-se uma obra singular na trajetória do cineasta ao resultar da abertura de seus interesses rumo às investigações acerca da subjetividade humana. Ainda que fosse autor de um cinema político em estreita proximidade com as tradições do nacional-popular, Hirszman propôs uma significativo deslocamento filosófico em sua série derradeira de trabalhos, voltando-se para a composição de filmes em torno dos mistérios relacionados às manifestações criativas do inconsciente. Realizado em parceria com a doutora Nise da Silveira, que revolucionou o tratamento da esquizofrenia ao defender a terapia ocupacional contra métodos “científicos” invasivos, Imagens do inconsciente retrata os casos clínicos de três pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II, todos de origem popular, que encontraram no fazer artístico uma expressão de suas fraturas subjetivas e um suporte para lidar com as instabilidades mentais.
Pontuados por comentários políticos que denunciam a violência da psiquiatria tradicional, os documentários apresentam perfis biográficos e psicanalíticos de Adelina Gomes, Carlos Pertuis e Fernando Diniz, narrando suas trajetórias em paralelo à exibição dos objetos artísticos que criaram no decorrer das longas internações resultantes da esquizofrenia. Em Imagens do inconsciente, o universo subjetivo revela-se por meio de pinturas, desenhos e esculturas, evidenciando não apenas os dilaceramentos e as riquezas da vida mental, mas inclusive a força plástica de manifestações estéticas oriundas de pacientes sem qualquer educação formal no campo artístico. Ainda que tais imagens servissem originalmente a um propósito médico, pois ofereceram suporte para tratamentos psiquiátricos, elas emergem nos filmes de Hirszman como expressões universais das angústias, fantasias e anseios humanos, como reflexos das complexidades intrínsecas à condição existencial. Obra fílmica sob inspiração junguiana, Imagens do inconsciente povoa o olhar dos espectadores com imaginários que lhes são, ao mesmo tempo, íntimos e estrangeiros.
A morte prematura de Hirszman aos 49 anos, no dia 16 de setembro de 1987, em decorrência da AIDS, acabaria impedindo a concretização de um futuro projeto cinematográfico que talvez marcasse o reencontro do cineasta com uma arte política de ampla circulação social. Ainda em fase embrionária no momento em que ele faleceu, a proposta de adaptar para as telas a vida de Antônio Conselheiro, um dos desejos últimos do realizador, sobreviveria apenas como um punhado de pesquisas esparsas acerca do líder messiânico da Guerra de Canudos. A tristeza resultante de tal informação, evidência de algo que se interrompeu, não deve, no entanto, sobrepujar o fato de que o cinema de Hirszman, nos anos posteriores à sua morte, seguiu despertando fortes interesses no campo cultural brasileiro.
Por um lado, a obra do artista, ainda que sem a sua presença, continuou em processo de construção. Para além das finalizações de ABC da greve (em 1991) e Bahia de todos os sambas (em 1996), dois outros filmes relacionados ao trabalho do cineasta seriam produzidos posteriormente, dessa vez sob direção de Eduardo Escorel: o documentário Deixa que eu falo (2007), perfil biográfico de Hirszman que apresenta filmagens inéditas por ele realizadas, e o longa-metragem Posfácio (2014), composto a partir de uma longa entrevista que o artista fez com Nise da Silveira em abril de 1986. Por outro lado, uma série de projetos culturais e acadêmicos, no trânsito entre a reflexão crítica e a memória histórica, mantiveram em circulação a filmografia de Hirszman. Em somatória às inúmeras mostras que lhe foram dedicadas e ao lançamento de versões restauradas de sua obra em DVD, publicações impressas sobre o cineasta seriam lançadas no período entre os anos 1990 e 2020. Dentre elas, o catálogo É bom falar (1995), editado por Arnaldo Lorençato e Carlos Augusto Calil, a reunir entrevistas concedidas pelo artista no decorrer de sua vida; a biografia O navegador de estrelas (1997), de autoria da jornalista Helena Salem; e o livro Por um cinema popular: Leon Hirszman, política e resistência (2020), escrito por Reinaldo Cardenuto. Finalmente, vale destacar a recuperação do audiovisual Cinema brasileiro: mercado ocupado, coordenada por Calil em 1995, cujo material origina-se de uma encomenda solicitada a Hirszman, pela Embrafilme, no ano de 1975.
O interesse renovado na obra do cineasta, entretanto, vai além de situá-lo como um artista cuja atuação ocorreu entre os anos 1960 e 1980. Em um Brasil que não superou as contradições sociais, onde tornam-se mais agudas as violências desferidas contra a classe popular, a cinematografia de Hirszman prossegue atualizando-se continuamente. As leituras que ele promoveu em seus filmes, nas quais desvelam-se perversos mecanismos políticos de dominação, seguem evidenciando condições autoritárias presentes em um país que retornou à democracia sem sobrepujar, efetivamente, as incongruências de sua (de)formação identitária. Com sua obra fílmica, construída entre o apuro estético e a denúncia social, Hirszman continua vivo não apenas como propositor de pedagogias críticas, mas também como um cineasta que sempre defendeu projetos de resistência em oposição aos desconcertos do mundo. Diante das contradições, seus filmes ensinam a lição da sobrevivência. Revê-los, à luz do tempo presente, permite reencontrar as potências da luta política, as inquietações necessárias para reativar os desejos utópicos de transformação da sociedade. A autoria que atravessa a obra de Hirszman, num ato contínuo de conscientização crítica, não se apaga na contemporaneidade. Ao voltar-se para a classe popular, representando-a como força coletiva pulsante, o cineasta deixou um legado fundamental para a lida diária contra a opressão social. A emoção que fundamenta seus filmes, emoção política que flui em prol dos oprimidos, mantém vivo o anseio da resistência. Sem esse sentimento de luta, parece anunciar a obra de Hirszman, não há possibilidades de um futuro mais digno para a existência humana.
Obra
Artística (filmes dirigidos por Leon Hiszman)
- “Pedreira de São Diogo” (episódio do longa-metragem “Cinco vezes favela”), ficção, p&b, 1962
- “Maioria absoluta”, curta-metragem, documentário, p&b, 1964.
- “A falecida”, longa-metragem, ficção, p&b, 1965.
- “Garota de Ipanema”, longa-metragem, ficção, cor, 1967.
- “Nelson Cavaquinho”, curta-metragem, documentário, p&b, 1969.
- “Sexta-feira da Paixão, Sábado de Aleluia” (episódio do longa-metragem “América do sexo”), experimental, p&b, 1969.
- “S. Bernardo”, longa-metragem, ficção, cor, 1972.
- “Ecologia”, curta-metragem, documentário, cor, 1974.
- “Megalópolis”, curta-metragem, documentário, cor, 1974.
- “Cantos de trabalho no campo: mutirão”, curta-metragem, documentário, cor, 1975.
- “Cantos de trabalho no campo: cana-de-açúcar”, curta-metragem, documentário, cor, 1976.
- “Cantos de trabalho no campo: cacau”, curta-metragem, documentário, cor, 1976.
- “Partido alto”, curta-metragem, documentário, cor, 1976-1982.
- “Que país é este?” (Inchiesta sulla cultura latinoamericana: Brasile), longa-metragem televisivo para a Radiotelevisione Italiana (RAI), documentário, p&b, cor – filme desaparecido, 1976-77.
- “Rio, carnaval da vida”, curta-metragem, documentário, cor, 1978.
- “ABC da greve”, longa-metragem, documentário, p&b, cor, 1979-90.
- “Eles não usam black-tie”, longa-metragem, ficção, cor, 1981.
- “Imagens do inconsciente” (trilogia composta pelos episódios “Em busca do espaço cotidiano”, “No reino das mães” e “A barca do sol”), longa-metragem, documentário, cor, 1983-86.
- “Bahia de todos os sambas” (dirigido em parceria com Paulo César Saraceni), longa-metragem, documentário, cor, 1983-1996.
- “Posfácio: Imagens do incosciente” (edição coordenada por Eduardo Escorel), longa-metragem, documentário, cor, 1984-2014.
Outras incurssões artísticas
- Assistência de direção e continuidade no filme “Juventude sem amanhã”, direção de Elzevir Pacheco da Silva e João César Galvão, longa-metragem, ficção, p&b, 1958.
- Colagem de imagens exibidas na peça “A mais-valia vai acabar, seu Edgar”, com autoria de Oduvaldo Vianna Filho e direção de Francisco de Assis. Encenações na arena da Faculdade de Arquitetura da então Universidade do Brasil (UFRJ), 1960.
- Roteiro e direção do audiovisual editado em vídeo “Cinema brasileiro: mercado ocupado”, curta-metragem, documentário, 1975-1995.
Cómo citar esta entrada: Cardenuto, Reinaldo (2021), “Hirszman, Leon”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org