FREIRE, Paulo Reglus Neves (Recife, Pernambuco, Brasil 19/09/1921 – São Paulo, Brasil 02/05/1997).
Paulo Freire foi uma pessoa encantadora nas múltiplas acepções que esse adjetivo carrega. Encantava as pessoas com sua figura miúda (grande por dentro), seu sotaque pernambucano (jamais abandonado) e sua barba bem cuidada (herança profética).
Seu maior poder de encantar tinha, no entanto, outra fonte: uma inesgotável incapacidade de desistir. De algumas pessoas se diz que são incapazes de fazer o mal, são incapazes de matar uma mosca, são incapazes de ofender alguém; Paulo Freire sofria (felizmente para nós) dessa outra incapacidade: não perdia a esperança.
Cabe perguntar: esperança em que? Na reinvenção do humano, na necessidade de inconformar-se com as coisas no modo como estão; dizia ele que “uma das condições fundamentais é tornar possível o que parece não ser possível. A gente tem que lutar para tornar possível o que ainda não é possível. Isto faz parte da tarefa histórica de redesenhar e reconstruir o mundo”.
Tarefa histórica era uma expressão muito usada por Paulo Freire; ora, de quem recebera ele essa tarefa? De si mesmo, na sua relação com o mundo real; sua consciência ética apontava sempre como imperativa a obra perene da construção da felicidade coletiva.
Ele encarnou, como poucos, um dos ideais da Grécia clássica que dizia ser a Eudaimonia o objetivo maior da Política (da vida na polis); literalmente eu/bem + daimonia/espírito interior, significaria paz de espírito, mas sua tradução oferece um ótimo trocadilho em português: felicidade e, também, feliz/cidade.
Foi exatamente esse ideal (a Política como busca da felicidade de todos e todas) que conduziu Paulo Freire para a Educação e, nela, para a prática libertadora.
Paulo Reglus Neves Freire! Quase ninguém o conheceu pelo nome completo (principalmente o Reglus, que dava a ele um certo ar de senador da república romana da Antigüidade); nascido na cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco no Brasil, em 19 de setembro de 1921, foi assim nomeado pelo pai Joaquim Temístocles e a mãe Edeltrudes.
Embora, na origem, viesse de uma família de classe média, sofreu o primeiro percalço aos 10 anos de idade quando, subitamente empobrecida (atropelada que foi pela famosa “crise de 1929”), a família mudou-se para Jaboatão, uma cidadezinha periférica à capital pernambucana e, três anos após, ficou órfão de pai. Viveu momentos profundos de pobreza e dor, mas soube incorporá-los positivamente em sua obra posterior.
Só conseguiu prosseguir na escolarização e concluir o secundário porque foi agraciado com sucessivas bolsas de estudo (e porque, aos 17 anos, começou a dar aulas de Português, idioma que tão bem soube manejar); com a idade de 22 anos entrou para a Faculdade de Direito do Recife e, tal como já fizera Karl Marx no século XIX, tornou-se advogado (poucos relacionam Freire e Marx a essa profissão).
Não seguiu carreira no Direito; mergulhou na atividade docente pelo restante de sua vida. Em 1959 obteve, por meio de concurso, o título de Doutor em Filosofia e História da Educação na Universidade do Recife da qual tornou-se professor titular.
Toda essa trajetória foi permeada por envolvimentos progressivos com as políticas públicas: aos 26 anos, já casado com a professora primária Elza Maria Costa Oliveira (com quem teve 5 filhos, e com quem viveu até 1986 quando da morte dela), passou a trabalhar, também, com educação de adultos, ao ser nomeado diretor do setor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (SESI); ali ficou por dez anos (nos três últimos como superintendente).
Em 1956 tornou-se integrante do Conselho Consultivo de Educação de Recife e, cinco anos após, diretor da Divisão de Cultura da Secretaria Municipal de Educação; em 1963 o governador Miguel Arraes o nomeou como membro do Conselho Estadual de Educação de Pernambuco e, logo a seguir, o presidente João Goulart o encarregou do Programa Nacional de Alfabetização (extinto em abril de 1964 pelo governo militar).
Quando o golpe militar de 1964 eclodiu, Paulo Freire estava em Brasília; seus vínculos com uma política progressista o tornariam um alvo fácil da sanha conservadora de alguns golpistas. Ficou escondido na capital federal por 30 dias, voltou para Recife e ficou preso em um quartel por 75 dias (onde aconteceu uma das histórias que ele mais gostava de contar: depois de alguns dias na prisão, foi procurado por um oficial que disse a ele haver muitos recrutas analfabetos no quartel e, sendo ele um professor, se poderia alfabetizá-los; resposta óbvia de Paulo: «Mas, meu filho, é exatamente por fazer isso é que estou preso!»).
Constrangido a ir, por duas vezes, ao Rio de Janeiro para responder a Inquérito Policial Militar (IPM), sentiu estar correndo risco de morte; pediu abrigo na embaixada boliviana e, aos 43 anos (também no seu natalício setembro) foi para a Bolívia. Nela não ficou nem dois meses, pois ocorreu um golpe de estado e ele partiu para o Chile.
Paulo Freire (agora com a família) ficou no Chile até 1969, atuando como assessor do Ministério da Educação chileno e consultor da UNESCO; dali foi como Professor
Convidado para a Universidade de Harvard (ensinar sobre si mesmo) e, em 1970, aceitou o convite do Conselho Mundial de Igrejas para ser seu Consultor Especial do Departamento de Educação em Genebra, na Suíça (tornando-se, ainda, professor da Universidade de Genebra). Nessa nova atividade percorreu todos os continentes e colaborou com dezenas de países (exceto o Brasil, no qual estava proibido de entrar), principalmente os recém independentes na África.
Em 1979 pode voltar ao Brasil e, corajosamente, declinou das credenciais que o governo suíço lhe oferecera para sua imunidade; à convite de D. Paulo Evaristo Arns, começou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica de Paulo (PUC-SP) de 1980 até 1997 e, por dez anos, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), ambas no Brasil. Em 1988 casa-se com Ana Maria Araújo Freire (de quem houvera sido amigo de infância e orientador no Mestrado em Educação da PUC-SP.
No mesmo ano do seu novo casamento, Luiza Erundina foi eleita para prefeita da cidade de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (do qual Paulo Freire é um dos fundadores); a primeira pessoa a quem ela convidou para compor o governo foi exatamente ele que, de pronto, aceitou (com o compromisso de ficar por dois anos, organizar o trabalho e a equipe e, depois, poder voltar a escrever e fazer conferências livremente).
Ficou de 1º de janeiro de 1989 até 27 de maio de 1991 como Secretário Municipal de Educação de São Paulo; saiu, deixando um “manifesto à maneira de quem, saindo, fica” e nele escreveu:
“não estou, rigorosamente, saindo da Secretaria Municipal de Educação ou mesmo deixando a companhia de vocês. Nem tampouco renegando opções políticas e ideológicas antigas, anteriores à criação do PT. Não imaginava sequer que o PT aconteceria, na minha juventude, mas sentia muita falta de sua existência. Esperei por mais de quarenta anos que o PT fosse criado. (…) Não estou deixando a luta, mas mudando, simplesmente, de frente”.
Nessa mudança de frente, sem deixar a luta, ele ficou ensinando, escrevendo, conversando, orientando, ou seja, ajudando a tecer a felicidade, até 02 de maio de 1997, quando o corpo dele morreu, vítima de um infarto.
O reconhecimento qualitativo de sua trajetória pode ser avaliada pelos seguintes números: recebeu 34 títulos de doutor Honoris Causa em vida e outros 5 post mortem pelo mundo afora; foi homenageado como “cidadão honorário” em 13 cidades brasileiras; recebeu mais de uma centena de prêmios, entre eles o “Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento” (Bélgica, 1980), “Prêmio UNESCO da Educação para a Paz” (1986) e “Prêmio Andres Bello” da OEA como Educador dos Continentes (1992); há mais de 300 escolas no Brasil e ao menos 10 delas no exterior com seu nome; há 35 praças e avenidas chamadas Paulo Freire em todo o mundo; é também nome de 36 centros de estudos e documentação (por todo o globo) e dezenas de medalhas e condecorações.
Paulo Freire é o brasileiro mais laureado no exterior e, para completar, ainda publicou dezenas de obras (escritas sempre à mão), traduzidas para 30 idiomas, sendo as mais conhecidas Educação como prática da Liberdade (1967), Pedagogia do Oprimido (1968), Extensão ou Comunicação (1970), Ação Cultural para a Liberdade (1976), Pedagogia da Esperança (1992) e Pedagogia da Autonomia (1997); há, ainda, perto de 1.000 sites na Internet que analisam seu trabalho.
Muitas vezes, ao se avaliar a importância da obra de Paulo Freire e o impacto que causou na realidade brasileira e internacional, foi comum tachá-lo de um “incompreendido”. Grande engano! Ele foi muito bem compreendido e, por isso mesmo, é amado e admirado por muitos e rejeitado por outros tantos.
Paulo Freire não era (e nem poderia ser) uma unanimidade; fez uma opção no enfrentamento político e existencial e, dessa forma, só um resultado anódino de suas idéias e práticas conseguiria situá-lo no altar ascético (e inerme) daqueles que são aceitos por qualquer um. Afinal, mede-se, também, o alcance do que se faz pela qualidade dos adversários que se encontra e das oposições que se manifestam.
Dele foi dito, por exemplo, que procurava a paz e sua pedagogia dialógica era dela uma ferramenta para o apaziguamento dos conflitos; contudo, ao receber o Prêmio Educação para a Paz da UNESCO (Paris, 1986) deixou bem claro qual era seu desejo:
“De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi sobretudo que a paz é fundamental, indispensável, mas que a paz implica lutar por ela. A paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças, o torna opaco e tenta miopisar as suas vítimas”.
Cómo citar esta entrada: Cortella, Mario Sergio (2020), “Freire, Paulo”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org