CARONE, Edgard (São Paulo, Brasil, 14/09/1923 – 31/01/ 2003)
Intelectual marxista e bibliófilo
O historiador Edgard Carone nasceu na cidade de São Paulo, em 14 de setembro de 1923. Filho de Sarah Hachen e Sharkir Jorge Carone, imigrantes libaneses que atravessaram o oceano atraídos pela prosperidade das modernas capitais latino-americanas. Antes de se instalar em São Paulo, seu pai viajou por todo o mundo: adquiria tecidos ingleses durante as liquidações sazonais e os revendia no hemisfério sul, rumando até a Austrália nas grandes embarcações transatlânticas que, à época, promoviam as migrações humanas e o trato de mercadorias. A longa jornada em alto mar era acompanhada de leituras e a escrita de um diário breve, anotado nas margens de uma Bíblia de bolso, em inglês. Na idade madura publicou dois livros, dentre eles, Raciocínio: o remédio social (1935).
Essas passagens influenciaram o jovem Edgard e, como ele costumava lembrar, os seus quatro irmãos: Maxim Tolstoi, Jorge, Mário e Raul. Além disso, a figura paterna se fez muito presente após a perda prematura da mãe. A família Carone vivenciou um ciclo virtuoso da economia paulista, gerado pelas exportações de café, com reflexos no desenvolvimento das atividades urbanas: a indústria, o comércio, o setor financeiro e de serviços. Sharkir era proprietário de uma loja de camas de ferro situada no térreo de um sobrado, no Centro da cidade. A família morava no piso superior. Na década de 1940, ele se consolidou no ramo financeiro, após a abertura de uma casa bancária. Tudo isso garantiu aos filhos uma boa formação escolar e intelectual. Edgard Carone fez os estudos no Liceu Nacional Rio Branco, instituição que se destacava por seu caráter progressista e laico, além de agregar jovens oriundos de famílias de imigrantes enriquecidos, em uma cidade cuja elite ainda resistia em os acolher. Além da educação familiar e do ensino formal, ele frequentava, desde moço, as livrarias e os sebos paulistanos. Tais aspectos nos permitem compreender seu interesse pela história das civilizações, despertada pelas narrativas de viagens do pai, as quais eram complementadas pelas leituras de obras geográficas e de literatura social. Tudo isso conformou traços muito peculiares da personalidade de Edgard Carone e, certamente, preparou o terreno para as primeiras incursões no marxismo.
É verdade que as leituras marxistas se deram por influência do irmão, Maxim Tolstoi – cujo nome, aliás, era uma homenagem que o pai rendera aos autores Maxim Gorki e Leon Tolstoi, o que diz muito do ambiente intelectual familiar. Ele se formou em História e Geografia, na então nascente Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, ou seja, no mesmo curso que Edgard Carone ingressaria, em 1944. Foi neste ano, aliás, que se filiou ao Partido Socialista, embora tenha mantido ligações longevas com os comunistas (Astrojildo Pereira ou Octávio Brandão). Diferente do irmão, que se tornara professor secundarista de História e militante ativo do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Mas as trajetórias políticas dos dois irmãos se cruzam, efetivamente, após um incidente: Maxim Tolstoi foi preso no dia de seu casamento, em 1941. É o período da ditadura do Estado Novo. Para o socorrer, Edgard Carone pede auxílio a Paulo Emílio Salles Gomes, Antonio Candido e Azis Simão, militantes socialistas mais velhos, que guardavam relações próximas com os comunistas. Inicia-se, assim, a sua militância e um círculo perene de amizades e colaborações. Nesse momento, a literatura comunista já fazia parte de seu repertório, pois quando a polícia invadiu sua casa e devassou o quarto do irmão, a maior parte dos livros se encontravam sob os seus cuidados, o que salvou os volumes de serem arrestados.
Apesar desse ritual de iniciação tão impactante na vida de um jovem, a trajetória política e intelectual de Edgard Carone se consolidou muito mais tarde, após ter se casado com Flávia de Barros Carone, criado os dois filhos, André e Antônio Candido, e experimentado a vida como produtor de café, na Fazenda Bela Aliança, no município de Bofete, no oeste do Estado. A história é narrada por ele no livro Memórias da Fazenda Bela Aliança (1991). Tal fato ocorreu em razão de um outro incidente: Carone foi reprovado nas disciplinas de Tupi e Pedagogia, o que lhe impediu de se diplomar com a sua turma. Como já estava casado e decidido a tentar a sorte na fazenda, ele apenas concluiria a graduação em 1969.
O retorno a São Paulo representa um ponto de clivagem em sua carreira profissional. É quando inicia a obra de sua vida: uma História da República, organizada em 11 volumes, cobrindo o período de 1889 a 1964 (ver abaixo os títulos publicados). Pesquisa original, que buscava compreender a natureza do golpe militar de 1964, a partir da análise das estruturas da sociedade. Desse modo, a economia, a política e as questões sociais eram confrontadas em um quadro de longa duração. O método se baseava na construção da narrativa a partir da exposição das fontes documentais, seguidas de suas respectivas análises. Carone vasculhou e adquiriu livros e documentos que cobriam todo o país, pois lhe interessava observar o movimento da história no plano local, regional e nacional, com a finalidade de apreender as assimetrias entre os Estados, mas também a composição do poder local e sua relação com o governo central.
Antes de mergulhar nessa longa pesquisa e de formar uma primeira coleção bibliográfica de fôlego, a Biblioteca Republicana, que seria mais tarde vendida para a Universidade Federal de Pernambuco, ele publicou uma pequena brochura, “Revoluções do Brasil Contemporâneo” (1965). Neste livro, o autor apresenta uma análise aguda dos movimentos sociais que conduziram o país da proclamação da República (1889), passando pelo Tenentismo e a Revolução de 1930, ao golpe do Estado Novo, em 1937. É que, como ele constata, as revoluções no Brasil não implicaram uma ruptura: “No Brasil não houve nenhuma mudança estrutural”, como dirá em uma entrevista.
E se a análise que faz Carone da história brasileira é guiada pelo conhecimento profundo das fontes e da bibliografia produzida sobre o período republicano, a matriz metodológica é marxista. Não por acaso, os desdobramentos das primeiras pesquisas resultam em novos estudos, agora, voltados para a problemática das classes sociais e suas ideologias. Em 1971 publica Pensamento Industrial no Brasil e, em em 1978, O Centro Industrial do Rio de Janeiro e a sua Participação na Economia Nacional. Na década de 1980 saem seus livros sobre o PCB e o movimento operário: Movimento Operário no Brasil (1981); O PCB (1922-1943), O PCB (1943-1964), O PCB (1964-1982), os três volumes publicados em 1982.
Nessa época, Edgard Carone já era um professor consagrado no Departamento de História da Universidade de São Paulo, onde ingressou em 1976, após lecionar na unesp-Araraquara e na Fundação Getúlio Vargas (fgv).
A Biblioteca Marxista e os estudos sobre a fortuna editorial do marxismo no Brasil surgem nos anos de 1980. A condição de professor universitário lhe faculta uma bolsa de pesquisa no exterior, concedida pela Fapesp. Logo, ele parte para Milão, e trabalha no arquivo Astrojildo Pereira. Traz para o Brasil uma série de documentos inéditos, os quais, somados à sua vasta biblioteca, permitem-lhe redigir os primeiros ensaios sobre a formação da literatura comunista no Brasil e as condições editoriais de produção e difusão editorial, publicados em: O Marxismo no Brasil: das origens a 1964 (1986), levantamento das obras publicadas no país, com base em sua própria coleção; Da Esquerda à Direita (1991), volume que reúne artigos sobre a fortuna editorial de O Manifesto Comunista, de Marx e Engels no Brasil, as estratégias de difusão da literatura comunista pelo PCB, entre 1922 e 1928, além de outros estudos sobre a ideologia dos industriais brasileiros.
Os títulos voltados para a relação entre literatura e público, partem de uma questão essencial: em que momento se organizou, no país, uma infraestrutura editorial com o objetivo de difundir a cultura operária e as leituras de formação marxista ou comunista? Como leitor de Marx e Engels, Edgard Carone constatou que as elites brasileiras dominaram os mecanismos de formação ideológica e sua infraestrutura, de modo que a abertura para o marxismo se deu após a Revolução Russa e o surgimento do Partido Comunista. Antes, as leituras socialistas ou marxistas deviam ser observadas como fenômenos isolados, iniciativas de indivíduos ou grupos que buscavam, com dificuldades, fixar as bases para a disseminação de uma cultura operária. Ou, no limite, era possível observar a difusão, nos jornais, dos textos de formação política – particularmente, entre os anarquistas – que escapavam dos referenciais burgueses.
As leituras sobre a história do movimento operário europeu e as Internacionais comunistas, cujos temas compõem sua rica biblioteca, converteram-se em dois livro: em 1993, publicou a antologia A II Internacional pelos seus Congressos (1889-1914); e, em 1996, Anarquismo e Socialismo no Início do Século, reunião de artigos sobre as temáticas em tela.
Na década de 1990, sua produção sobre a República brasileira foi eclipsada no meio acadêmico, em função de novas tendências historiográficas que privilegiavam a micro história, os vencidos, os debates sobre gênero e poder, para citar as abordagens mais marcantes. Edgard Carone jamais se rendeu aos modismos e, coerente com a decisão de não se filiar a nenhum partido político para não sofrer qualquer tipo pressão ideológica, manteve firme seu programa historiográfico.
No final da vida, somou às pesquisas no âmbito das leituras marxistas, uma análise geohistórica sobre a A Evolução Industrial de São Paulo, 1889-1930. Era como se retornasse à velha metrópole do início do século, onde a história de sua família começou. Na medida em que se acentuavam os sintomas do mal de Parkinson, a escrita cedia lugar para os longos períodos de leitura e o arranjo dos livros em sua biblioteca. Foi um historiador nato e bibliófilo apaixonado. Como disse certa vez: “Vivi em função de colecionar coisas”. Edgard Carone faleceu em 31 de janeiro de 2003.
Obra
Além dos mencionados, livros sobre a República Brasileira (todos os títulos foram publicados pela editora Difel):
- A Primeira República: texto e contexto, 1969.
- República Velha: instituições e classes sociais, 1970.
- República Velha: evolução política, 1971.
- A Segunda República: documentos, 1973.
- República Nova (1930-1937), 1974.
- O Tenentismo, 1975.
- A Terceira República, 1976.
- O Estado Novo, 1976.
- A Quarta República (1945-1964), 1980.
- A República Liberal I (1945-1964), 1985.
- A República Liberal II (1945-1964), 1985.
Cómo citar esta entrada: Deaecto, Midore Marisa (2020), “Carone, Edgar”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org