BONI DE LACERDA, Elvira (Espírito Santo do Pinhal, São Paulo, Brasil, 1899 – Rio de Janeiro, Brasil, 1990).
Há imprecisões biográficas sobre a data completa e exata de seu nascimento e morte. Apenas os anos são confirmados de maneira mais precisa nos referenciais bibliográficos pesquisados e entrevistas de História Oral concedidas por Elvira e colhidas por Ângela de Castro Gomes (1988).
Operária (costureira), militante anarquista no teatro operário, na propaganda e nas organizações libertárias. Tesoureira da União das Costureiras do Rio de Janeiro (1919 – 1922).
Elvira Boni era filha dos imigrantes italianos Angelo Boni e Tersila Aciatti Boni, vindos para o Brasil na “Grande Onda Imigratória” dos finais do século XIX para trabalhar nas lavouras de café ou em serviços relacionados, em plena expansão no período, no interior paulista. Ela, dessa forma, nasceu no Brasil, em 1899, na cidade em que a família se instalara: Espírito Santo do Pinhal. Foi a segunda filha do casal e teve mais duas irmãs (Anunciata e Carolina, também militante anarquista) e três irmãos (Estevão, Amílcar e Germinal).
Seu pai, que quando se instalou na nova cidade foi empregado em uma pequena metalúrgica até começar a trabalhar como serralheiro, meses depois, já circulava entre os meios anarquistas em seu país natal e, justamente por isso, ela e seus irmãos tiveram contato com os ideais e a formação libertária na própria família. O que se aprofundou, sobretudo, depois de sua mudança para a então capital do país, o Rio de Janeiro, na primeira década do século XX.
A cidade se industrializava e, além do enorme contingente de trabalhadores nacionais negros, fugidos, forros ou recentemente instalados na cidade a procura de melhores condições de vida e trabalho – no período imediato do pós-abolição – recebia, ainda, grande número de trabalhadores imigrantes europeus. Foi nesse contexto que Elvira, ainda uma criança de 10 anos – em 1909 – circulava nos meios anticlericais com seus irmãos e em que teve os primeiros contatos com diversos ideais de resistência, seja dos trabalhadores e trabalhadoras negras que criaram uma infinidade de formas de resistir à escravidão e nos períodos subsequentes à abolição que não lhes garantiu qualquer direito; seja dos imigrantes que traziam para o país suas ideias e teorias de lutas de classe, como o anarquismo. Os métodos de luta e resistência se entrelaçavam no cotidiano da cidade, que crescia rapidamente no período.
Foi assim, portanto, que teve seu primeiro contato com as discussões salariais e de luta por melhores condições de vida e trabalho, assim como participou, pela primeira vez, na Liga Anticlerical do Rio, de grupos teatrais operários que estudavam juntos e propunham peças de crítica social.
Num dos raros relatos orais colhidos e publicados em livro, organizado por Ângela de Castro Gomes (1998), Elvira não nos conta apenas sobre esse conhecimento e ingresso no anarquismo pela família, mas sim nos aponta e analisa inúmeras questões que permeavam o cotidiano da maior parte das mulheres operárias do Brasil. A primeira questão que chama atenção é que ela afirmava ter estudado apenas os primeiros anos do ensino primário em uma escola formal – o Grupo Escolar Senador Vergueiro -, aprendendo o básico da alfabetização. O mesmo ocorrera com suas irmãs, Anunciata e Carolina. Ainda crianças, elas ajudavam a mãe nos cuidados e trabalhos domésticos e nos cuidados dos irmãos mais novos (um deles ficara doente) e, ainda muito novas, aprenderam o ofício de costureira, no caso de Elvira (com 12 anos), e bordadeira, Carolina – ofícios a que se dedicaram por toda a vida – e Anunciata, que realizava trabalhos domésticos. Interessa-nos notar, assim, que, para além das péssimas condições de trabalho das mulheres nas indústrias, oficinas e ateliês instalados nas cidades brasileiras, o acesso ao ensino formal era de fato pequeno ou inexistente para as mulheres pobres, negras e brancas em todo o Brasil e isso pautou a luta de inúmeras mulheres libertárias por aqui, como a própria Elvira. Quando começou a trabalhar, já tinha contato com ideias libertárias, o que influenciava sua maneira de ver o mundo e de resistir à exploração e opressão no trabalho.
[…] O primeiro trabalho de aprendiz era catar alfinetes no chão, passar a vassoura na sala, chulear, arrematar as costuras. Trabalhei três meses sem ganhar nem um tostão. No fim de três meses é que a madame me deu 10 mil-réis. Não dava nem para pagar a passagem do bonde.
Boni apud: Gomes, 1988, p. 25, grifos nossos.
Além disso, notamos no relato que, a organização pelo que hoje chamamos de gênero e por ofício, entre as mulheres, era prática também porque a elas eram destinados esses ofícios tradicionalmente tomados como femininos, sejam nas fábricas têxteis ou nos ateliês e oficinas de costura e bordado. As mulheres aprendiam a costurar ainda em casa, com a mãe ou outras mulheres da família. Justamente por isso, ela fundou, com outras mulheres, a União das Costureiras, que partia da percepção que ser mulher operária tinha singularidades não só em relação às mulheres burguesas, mas em relação aos próprios homens operários. Discussões a respeito da falta de acesso à educação formal; à falta de instrução feminina agravada pelas grandes jornadas de trabalho nas fábricas oficinas e ateliês, bem como pela dupla jornada de trabalho -haja vista que quando chegava em casa, a mulher operária ainda se dedicava ao trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos- e a noção de soberania ou domínio masculino na sociedade e no próprio movimento permearam organizações como essa e incluíram inúmeras questões para o movimento anarquista, o que permitiu sua diversificação e complexidade, mas, acima de tudo, a percepção prática dos próprios militantes da heterogeneidade da classe trabalhadora. A libertação total da humanidade, fruto da revolução social almejada pelos libertários, passaria, portanto e obrigatoriamente, pela emancipação intelectual, igualdade no trabalho, liberdade sexual, maternidade livre, que permitiriam a emancipação feminina.
A União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas do Rio de Janeiro, fundada em 18 de maio de 1919 e com sede na Rua Senhor dos Passos (onde se dividia as despesas do aluguel com a União dos Alfaiates) tinha bases organizacionais e administrativas afinadas com as propostas libertárias e mesmo do sindicalismo revolucionário expressos nas discussões operárias dos congressos operários nacionais (1906, 1013, 1920) e até internacionais. Sua organização se dava em comissões executivas com rotatividade de membras, geralmente secretária, tesoureira, revisora de contas, bibliotecária e vogais eleitas em assembleia e com votos deliberativos. Suas fundadoras foram Elvira Boni (tesoureira), Eliza Gonçalves de Oliveira, Aída Morais, Isabel Peleteiro, Noêmia Lopes e Carmen Ribeiro (empolgadas pelas manifestações do 1º de maio de 1919). Algumas de suas fundadoras eram anarquistas, outras o conheciam ou simpatizavam com seus princípios.
Em sua primeira reunião, segundo Elvira Boni, havia quarenta mulheres e, após três meses da fundação, fizeram uma greve pela jornada de oito horas de trabalho e melhores salários. A jornada de oito horas foi alcançada. Tal União teve participação ativa nas movimentações operárias da época e nas reuniões de organizações sindicais e anarquistas, especialmente, no Terceiro Congresso Operário, de 1920.
Nós precisávamos ir chamar as moças para fazerem a greve. E, numa dessas ocasiões, duas ou três companheiras foram presas numa fábrica de camisas para homens na Rua dos Andradas. Quando eu soube disso, me juntei com mais duas e fomos lá na Rua da Relação falar com o Bandeira Mello [Chefe de Polícia]. Ele apareceu e disse: “O que as meninas querem comigo?” Eu digo: “Protestar contra o absurdo que houve. Prenderam três moças porque elas estavam chamando as companheiras para fazerem greve para a conquista das oito horas de trabalho”. E dali a pouco elas foram soltas. O Bandeira Mello me deu muitos conselhos, disse que eu não me deixasse levar por aqueles sindicalistas da União dos Alfaiates, porque eles só sabiam fazer barulho e mais nada. Eu digo: “Não, nós temos ideias próprias. Não vamos nos deixar levar por ninguém”.
Boni apud: Gomes, 1988, p. 34. grifos nossos.
Elvira contava, ainda, sobre as condições de trabalho e a divisão do trabalho em oficinas de costura na cidade do Rio. Segundo ela, na primeira oficina de costura que trabalhara havia seis moças por mesa em duas mesas. Ali o trabalho se dividia em: saieiras que recebiam de 120 a 150 mil-réis; corpinheiras (faziam o corpo da roupa e montavam o vestido no manequim); ajudantes (que não eram profissionais
perfeitas, mas aprendiam o ofício) cujo salário era de 40 a 80 mil-réis, as aprendizes (que faziam qualquer serviço da oficina) às vezes sem nenhum salário; a chefe de mesa (com cortes e trabalhos mais elaborados e difíceis) e as profissionais que faziam mangas. O trabalho se iniciava às 8h da manhã e as aprendizes chegavam mais cedo para deixar tudo “em ordem”. O almoço era das 11h30 às 12h (apenas meia hora) com almoço feito peça própria madame, que morava no andar de cima da oficina. Havia apenas quinze minutos para o café e o expediente se finalizava às 18h. Tal descrição expressa princípios de gestão racional de trabalho e a divisão do trabalho dentro das fábricas, o que garantia grandes lucros aos proprietários e empregadores.
Essas questões, que ocupavam espaços importantes da existência das mulheres da classe trabalhadora urbana, permearam suas lutas e fizeram com que o próprio movimento, seja anarquista, seja trabalhador, de outras tendências políticas, e mesmo as movimentações femininas as observassem e pautassem disputas e mobilizações em torno delas. Lutavam por melhores condições de trabalho, regulamentação e diminuição de jornadas, aumento de salários – definidas como “melhorias imediatas” por anarquistas e pelo sindicalismo revolucionário – e por acesso à educação e à instrução. Não é à toa que os Congressos Operários e a própria Confederação Operária Brasileia discutissem questões relativas à educação do operariado como um todo. Elvira e Carolina Boni, ainda, e como outras libertárias, insistiam na importância da educação e da instrução femininas como meios essenciais e bases de sua emancipação – ponto crucial da luta pela emancipação da humanidade proposta pelos anarquistas. Segundo ela, “sempre havia preocupação de ensinar”. (Boni, apud: Gomes, 1988, p. 62).
[…] deves congregar todos os teus esforços, buscando a instrução como principal fator para uma vitória consciente, e ao lado do homem formar no batalhão que há de levar por diante a luta para a conquista de uma sociedade onde desapareça a cadeia, substituída pela escola – onde não exista ódio para viver o Amor
Boni, Renovação, novembro de 1921, apud: Rodrigues, 2007, p. 138.
Elvira atuou no anarquismo em várias frentes. Sua presença era notável declamando poesias em festas e festivais operários de propaganda e lazer instrutivo e desenvolveu grande atividade no teatro operário (de 1912 a 1922), em grupos como o Grupo Dramático 1º de Maio. Elvira fez papel na peça “Pecado de Simonia”, de Neno Vasco, amplamente representada, durante as primeiras décadas do século XX. Teve papel importante na discussão e organização de associações de mulheres operárias segundo as bases do anarquismo, anarco-sindicalismo e sindicalismo revolucionário e nas propostas de uma educação que seguisse princípios libertários e racionalistas. Sua presença nas movimentações e a importância das uniões livres como a União das Costureiras do Rio de Janeiro fizeram com que Elvira Boni e Noêmia Lopes representassem a União das Costureiras no Terceiro Congresso Operário Brasileiro, que reafirmava a importância de organizações de resistência como as formadas por essas mulheres. Elvira dirigiu os trabalhos da mesa de encerramento do Congresso (a única mulher na mesa) iniciando sua fala com uma homenagem ao proletariado russo, que tomara o poder em 1917, e outra homenagem à resistência do proletariado português – segundo princípios claramente internacionalistas propostos por tantos outros libertários – e, ainda, pedindo que os presentes cantassem a primeira estrofe do hino “A Internacional”.
A Sessão de Encerramento
3º Congresso Operário Brasileiro, p. 197, grifos nossos.
O Rebate, 9/6/20 – 3 Congresso Operário Brasileiro.
Uma jovem costureira preside a sessão de encerramento- Liberdade, Igualdade e Fraternidade!
Salve! Proletariado do Brasil! – “O Rebate”, com os congressistas e numerosa assistência, deixa às 3 horas da madrugada do dia 30, o recinto do congresso. Realizou-se a última sessão do 3º Congresso Operário Brasileiro.
Como em todas as reuniões anteriores a assembléia esteve, sempre, vivamente interessada em todos os assuntos que se debatiam, acompanhando com moções e propostas as resoluções que deviam ser dadas a cada parte da ordem do dia.
A abertura da Sessão
Ás 6:35hs da tarde a campainha anunciou o início da sessão, estando na presidência Antônio da Silva Monteiro e nos lugares de secretários Luiz Corrêa de Mello, Gaudêncio José dos Santos e Isidoro Diego.Como de praxe foi procedida a chamada e lida ata da sessão anterior, que a assembléia aprovou sem qualquer alteração.
Estando terminados os trabalhos na mesa, foram convidados a ocupar os lugares os escolhidos na reunião de anteontem.
Assim é que, sob uma salva de palmas a direção dos trabalhos foi assumida por Elvira Boni da União das Costureiras, tendo como secretários José Salazar, A. [da] Canteiros de Jaú e Orlando Martins F.O. [Federação Operária] do R.G.S. [Rio Grande do Sul].
Logo após a camarada Elvira agradeceu a escolha feita pelo congresso para presidir os trabalhos, submetendo-se à apreciação da assembléia uma proposta feita à mesa para que fosse cantada a 1ª estrofe da “Ïnternacional”.Todos presentes aplaudiram a proposta e as notas vibrantes do hino dos trabalhadores, em coro uníssono, elevam-se no ar.
3º Congresso Operário Brasileiro, p. 197, grifos nossos.
Em 1922 Elvira Boni se casou com Olgier Lacerda. Conheceu-o na militância e atuação no Grupo Dramático 1º de Maio anos antes. Os dois compartilharam ideais e militância e chegaram a morar com os militantes comunistas Octavio e Laura Brandão. Sua presença nas movimentações anarquistas e no movimento operário foi marcante até a dissolução da União das Costureiras, em 1922 e sua mudança para Bajé, no Rio Grande do Sul, em 1925, onde o marido trabalhava como contador. Eram anos em que o movimento sofria com a crescente repressão policial, expulsão de militantes e em que o anarquismo marcava suas fortes posições e presença, mas crescia também a filiação ao recém fundado (1922) Partido Comunista Brasileiro.
Ao retornarem para o Rio de Janeiro, já com duas filhas, em 1929, Elvira se envolveu com o Socorro Vermelho, que recolhia fundos para companheiros presos e suas famílias. Olgier se filiou, em 1945, à Aliança Nacional Libertadora, de caráter comunista, da qual Elvira nunca se filiou por não acreditar na luta partidária. Preferiu a luta na Associação das Senhoras de Santa Teresa, que ajudou a fundar, em 30 de setembro de 1949. Era uma associação de moradoras que contava com inúmeras militantes comunistas, mas que se pautava na luta por melhorias no bairro (água, luz, telefone, ambulatórios), na proteção à infância (aulas de alfabetização, luta por matrículas em escolas) e na melhoria de vida das mulheres (aulas de corte e costura para profissionalização e independência financeira). Nessa época foi perseguida e presa. Eram anos de ainda mais forte repressão e perseguição de militantes.
Nos anos que se seguiram, Elvira Boni se manteve firme em suas convicções libertárias e atuações, embora mais discretas, por assim dizer, nas movimentações. Morreu em 1990, mas suas lutas e convicções práticas influenciaram inúmeras lutas operárias, uniões livres e organizações de bairro como as tantas formadas nas grandes cidades do Brasil a partir da década de 50 do século XX. Suas lutas e a de outras anarquistas marcaram, ainda, diversas movimentações femininas e feministas, mesmo que nem sempre reconhecidas nominalmente. Somos, hoje, porque elas foram, no passado.
Obra
- 3º Congresso Operário Brasileiro, Vol. 3, Pelotas, Rio Grande do Sul, S/E, dezembro de 1998.
- O Nosso Jornal, Rio de Janeiro, 1 de maio de 1923. Foi um jornal em único número (quase um manifesto) publicado pelo Grupo Pela Emancipação Feminina, que contava com mulheres da já dissolvida União das Costureiras. Inclusive da irmã de Elvira, Carolina Boni. Acessível em: Arquivo Edgard Leuenroth – Universidade Estadual de Campinas – São Paulo.
- Renovação, Rio de Janeiro, 1921.
Cómo citar esta entrada: Mendes, Samanta Colhado (2020), “Boni, Elvira”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org