ARRAES DE ALENCAR, Miguel. (Araripe, 15/12/1916 – Recife, 13/08/2005). Nasceu a 15/12/1916 na cidade de Araripe, estado do Ceará.
Era o único filho homem em meio a 6 irmãs. Seu pai, José Almino Alencar, além de dublê de produtor rural e pequeno industrial (possuía um matadouro e uma fábrica de beneficiamento de algodão) era também descendente de uma tradicional família de políticos cearenses. Criado dentro dos ascéticos padrões sertanejos, Arraes, contudo, jamais experimentou as agruras e desprovimentos comuns aos seus conterrâneos.
Fez seus estudos primários em sua cidade natal, e o equivalente ao secundário no Colégio Diocesano do Crato (importante cidade da região do Cariri cearense). Após o quê, mudou-se para o Rio de Janeiro a fim de tentar uma vaga na Faculdade de Direito. Sua estadia no Rio, todavia, não duraria muito. Sem recursos para se manter, vivendo dos favores de um tio materno, nem bem concluiu seu primeiro ano na Faculdade decidiu submeter-se a um concurso para compor o quadro funcional do recém criado IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), em 1934. Deve-se a essa circunstância sua transferência para o Recife, onde finalmente pôde concluir sua formação universitária.
Funcionário de carreira do IAA Arraes trabalhou sob as ordens de J. A. Barbosa Lima Sobrinho, presidente do órgão à época. Desta convivência nasceu o convite para ser Secretário da Fazenda de Pernambuco (1948-50) quando Barbosa Lima elegeu-se governador do estado pelo PSD (Partido Social Democrático). Condição a que voltaria em 1959 quando, durante o governo Cid Sampaio (eleito pela UDN – União Democrática Nacional – com apoio das esquerdas), quando assumiu mais uma vez a mesma Secretaria da Fazenda. Seu ingresso na vida pública deu-se, pois, mais como técnico do que como político. Estas experiências, no entanto, estão longe de poder serem tomadas como a marca política de Arraes. Pelo contrário, muito antes de ser um político de perfil gerencial, Arraes se caracterizou por ser um político de forte carga ideológica. Pode-se mesmo dizer que foi um dos formuladores intelectuais de um ideário nacional-popular no Brasil.
Sua liderança, cujo auge se deu entre fins dos anos 1950 e 1964, lastreou-se, na verdade, em dois pilares. De um lado estava o tom resoluto de seus incontáveis discursos, pronunciamentos e declarações, no sentido de afirmar que o “nacionalismo é uma tomada de posição viril [que] exige a compreensão nítida da realidade em que vivemos”. Mais até, com inaudito destemor e desembaraço, assumia uma postura de denúncia – ele que era o prefeito do Recife – para dizer que:
os problemas do Recife são piores do que tudo que se possa imaginar, […] fruto de uma estrutura agrária frágil de um estado monocultor e latifundista e de um parque industrial obsoleto […]. O quadro de desemprego, nesta cidade, assume as raias do absurdo […]. À grande maioria somente está reservada ou o desemprego mais inquietador ou o semi-emprego, a ocupação transitória que apenas atenua a fome […] (Discurso pronunciado na Sessão Solene da Câmara Municipal do Recife para a entrega do título de Cidadão do Recife ao Presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira. Ver Atas da Câmara Municipal do Recife, 17/09/1960. Agradeço a Bianca Nogueira da Silva a gentileza de me ceder cópias do material recolhido em sua pesquisa sobre o MCP (Movimento de Cultura Popular).
E, no que denunciava, tomava posição em favor de “uma luta sem quartel contra o pauperismo, o analfabetismo e o verdadeiro estado de degradação econômica” que condenava a cidade e o país a essa desastrosa condição.
De outro lado, há que se considerar o exemplo que deu como prefeito do Recife (1960-62) e governador de Pernambuco (1963-64) de como proceder para redirecionar as ações do poder público em prol das demandas populares. Numa época de crescente acirramento da luta política, de acentuada polarização ideológica, as administrações de Arraes à frente dos executivos municipal e estadual foram inequivocamente identificadas como uma referência de governo democrático-popular. Afinal, não fora ele que em 1963 promovera o Acordo do Campo, garantindo, com isso, a extensão dos direitos trabalhistas a todo o vasto contingente de trabalhadores da cana?; que enfrentara um lock-out e um boicote dos proprietários (chegando a confiscar mercadorias a fim de assegurar o abastecimento popular)?; que criara o MCP (Movimento de Cultura Popular) dando, assim, condições de se desenvolver um inédito e significativo movimento em favor da educação de jovens e adultos trabalhadores, e também, paralelamente, de valorização da cultura popular? Não fora ele, enfim, que urbanizara amplas porções da cidade do Recife, que apoiara irrestritamente a utopia desenvolvimentista da SUDENE, que colocara o poder público como mediador dos conflitos sociais (e não mais como um extenso “aparelho repressor”)?
Tendo assumido posições firmes com relação à natureza da luta política então em curso, e a direção que a mesma deveria tomar com vistas superar o multissecular quadro de expropriação e miséria a que tanto a Nação quanto o Povo brasileiro viviam submetidos, Arraes foi facilmente catapultado para um plano quase mítico. Começou a surgir aí a figura do “Pai Arraia” que, anos depois, teria grande penetração entre, sobretudo, camponeses e trabalhadores rurais.
Não se deve, contudo, perder de vista que, paralelo à ousadia e arrojo de suas declarações e ações, havia um político de faro extremamente apurado, um estrategista ardiloso que, sem pejo, forjava alianças eleitorais com alguns dos setores mais conservadores da política pernambucana.
Não se pense, porém, que esse era um talento inato, do qual tenha podido se beneficiar desde sempre. Basta considerar suas primeiras incursões no campo político-eleitoral para ver que, como tudo o mais, isto também resultou de um aprendizado: sua primeira tentativa de concorrer a um cargo eletivo (Deputado Estadual, 1950) foi fracassada (embora, devido ao fato de ter ficado na primeira suplência, tenha assumindo o mandato); na segunda (novamente para Dep. Estadual, 1954) obteve melhor resultado, elegendo-se; o que não se repetiu na eleição seguinte, 1958, quando mais uma vez concorreu a Deputado Estadual e, de novo, sem sucesso.
Deposto pelos militares em 1º de abril de 1964, Arraes passou os 12 meses seguintes preso. Beneficiado por um hábeas corpus, em abril de 1965 foi posto em liberdade. Tendo ciência da precariedade de sua situação, sabia que ou se exilava ou em breve retornaria para a prisão. Após algumas tentativas infrutíferas junto às embaixadas da França e de alguns países da América Latina, finalmente obteve asilo na embaixada da Argélia. Em junho de 1965 seguiu para Argel. Lá viveu por 14 anos.
Durante esse período manteve intensos contatos com grupos, militantes, lideranças e intelectuais de esquerda da África (à época conflagrada pelas lutas de independência de diversos países), Europa e América Latina. Foram freqüentes, também, seus contatos com lideranças políticas brasileiras exiladas na Europa. Não obstante, foram anos igualmente dedicados aos estudos e reflexões sobre a possibilidade de (e os caminhos para) o Brasil superar seu imorredouro legado colonial, que insistia em manter o país numa posição subalterna no plano internacional, ao passo que, internamente, reproduzia estruturas arcaicas, violentas, autoritárias, cujos resultados não eram outros que um povo submetido à mais intensa exploração e impossibilitado de se organizar politicamente. Foi munido de tais convicções que, em 1979, anistiado, Arraes pisou de novo em solo brasileiro.
Sua recepção foi cercada de intensas manifestações populares. Entretanto, de parte das novas lideranças políticas pernambucanas que haviam surgido nesse período, o retorno de Arraes não deixava de causar certo desconforto. A despeito dos expressivos resultados eleitorais que conquistou ao longo da década e meia que se seguiu à sua volta, não há como descurar o fato de que, de um lado, a cada eleição, Arraes precisou disputar espaço com novos expoentes da esquerda que, apenas muito a contragosto, aceitavam a liderança do “velho”. Por outro lado, mesmo que tenha sido eleito por mais duas vezes governador de Pernambuco (em 1986 e 1994) – e, em outras duas ocasiões (1982 e 1990), Deputado Federal, sempre com votações excepcionais –, o certo é que, mais e mais, ele tornava-se um político de expressão tão somente local.
Diferente de Leonel Brizola, por exemplo, que ao retornar do exílio, abraçou o Rio de Janeiro como sua base política, ao optar por fixar-se em Pernambuco – estado que há muito vira exaurir-se qualquer expressão econômica e política que outrora tivera –, Arraes viu diminuir drasticamente suas chances de desempenhar um papel político mais ativo no plano nacional. Ademais, confrontados com o inequívoco caráter de ruptura que suas administrações como prefeito e governador nos anos 1960 haviam adquirido, seu segundo (1987-90) e terceiro (1995-98) mandatos como governador pouco mais representaram que uma contrafação. Sobretudo o último deles, ocorrido durante a fase mais aguda de reestruturação fiscal do Estado brasileiro – que implicou em profunda fragilização das finanças dos entes federativos –, e, simultaneamente, contando com uma franca má vontade do governo federal, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, a quem fazia oposição, foi extremamente decepcionante.
Seu “ressurgir das cinzas” – no sentido de conquistar novos espaços no cenário político nacional – se deu, de certo modo, com a eleição, em 2002, de Luís Inácio Lula da Silva para presidente (a quem seguidamente apoiou em todas as suas tentativas anteriores). Nada, porém, que pudesse recompor o viço de uma carreira política que se fizera na linha de frente do combate em favor de um projeto mais solidário de nação. E que, derrotado em sua utopia, seguira mantendo a mesma e antiga convicção de que somente um programa político de base nacional-popular poderia vir a emancipar o Brasil das estruturas que só têm perpetuado e aprofundado o gritante hiato social que, de longa data, o marca e caracteriza.
Miguel Arraes faleceu a 13.08.05. Tinha 88 anos e mais de meio século de vida pública.
Obra
- A democracia e a questão nordestina, Recife, Editora ASA, 1985.
- A nova face da ditadura brasileira, Lisboa, Seara Nova, 1974.
- A questão nacional e a crise, Brasília, Câmara dos Deputados, 1993.
- A questão nacional e os problemas do nordeste, Brasília, Câmara dos Deputados, 1984.
- Conversações com Arraes (Entrevistadores: Cristina Tavares e Fernando Mendonça), Belo Horizonte, Vega, 1979.
- O jogo do poder no Brasil, São Paulo, Alfa-Ômega, 1981.
- Palavra de Arraes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
- O Brasil, o povo e o poder, Recife, Editora Universitária-UFPE, 2006 (1970).
- A etapa atual da luta democrática, Brasília, Fundação João Mangabeira, s.d.
- Brasil: a questão nacional, Brasília: Fundação João Mangabeira, 2005 (1973).
- A mentira como arma eleitoral: o caso dos precatórios. Brasília: Fundação João Mangabeira, 2003.
- As eleições de 1998 e o golpe militar de 1964. Brasília: Comissão executiva do PSB, 1998.
- Em defesa da soberania nacional. Brasília: Câmara dos Deputados, 1992.
- Os rumos da mudança. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação, 1984.
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