RIBEIRO, Darcy (Montes Claros, no alto sertão do norte de Minas Gerais, Braisl 26/10/1922 – 17/02/1997).
Pouco conviveu com o pai, que faleceu quando tinha três anos de idade, e assim foi criado pela mãe, Dona Fininha, professora da escola pública municipal, junto a um irmão mais novo. Sua família paterna pertencia à elite local, composta de fazendeiros, médicos, padres e funcionários públicos. Anos mais tarde, justificava sua desmedida liberdade de ser e de falar pelo fato de não ter sofrido controle paterno, portanto, nunca se sentira reprimido, não fora “domesticado”, nem tivera que domesticar ninguém, por não ter tido filhos.
Tinha oito anos quando sua cidade foi invadida por uma tropa estadual enviada para dominar a resistência da liderança municipal à Revolução de Trinta, que modificou o panorama político brasileiro na primeira metade do século passado. Presenciou também um ano de uma grande seca na região, com a chegada de centenas de famílias desvalidas e esfomeadas que foram socorridas pelos moradores da cidade.
Afora esses dois acontecimentos extraordinários, Darcy viveu infância e juventude de menino despreocupado e traquinas de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais onde a convivência social entre classes era bem mais frouxa que atualmente. Consta que um dia jogou um pacote de azul de metileno na Caixa d´Água da cidade e apavorou os cidadãos com a água azul jorrando de suas bicas. Tal como muitos de sua geração, que depois viraram poetas, escritores e políticos nacionais, foi por meio da leitura que tomou gosto pela literatura, pelas artes e pela vontade de conhecer as coisas do mundo.
Aos 18 anos mudou-se para Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, com o intuito de estudar medicina. Em pouco tempo se deu conta de que não tinha vocação para cuidar de gente moribunda (conforme se expressava) e passou a freqüentar as aulas da Faculdade de Direito, onde se discutiam assuntos políticos, filosofia, história e ciências sociais. Envolveu-se no movimento estudantil que, à época, se posicionava entre as idéias do integralismo, liderado pelo político Plínio Salgado, e as do comunismo, sob a égide do proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB). Com a Segunda Grande Guerra em andamento, Darcy tomou partido com os comunistas convencido pela visão de que eles tomavam para si os problemas de todos e quaisquer países do mundo, enquanto a Ação Integralista se mostrava preconceituosa e fechada em uma tacanha ideologia nacionalista.
Em 1943 ouviu uma palestra do sociólogo americano Donald Pierson, que dava aulas na Escola de Sociologia e Ciência Política de São Paulo, e decidiu-se mudar para São Paulo e estudar ciências sociais. Ao mesmo tempo que terminava seus estudos acadêmicos, fazia política pelo PCB. Em 1946 era responsável pela célula comunista do Bairro da Luz, em São Paulo, e foi um dos principais ajudantes da campanha vitoriosa de Caio Prado Jr., renomado historiador e comunista paulista, à Assembléia Legislativa de São Paulo. Em finais de 1947, ao terminar seu curso em ciências sociais, pleiteou dirigir o jornal do PCB, mas foi persuadido a fazer carreira intelectual. Vem ao Rio de Janeiro e é contratado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão federal dedicado à proteção e assistências dos povos indígenas, criado e dirigido pelo eminente General Cândido Rondon, de quem viria a se tornar amigo e admirador.
Darcy trabalhou no SPI de 1948 a 1957, ao lado de Rondon e junto a indigenistas como Orlando Villas-Boas e Francisco Meirelles e antropólogos como Carlos Moreira Neto, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira, estes últimos advindos do PCB, que convocou para esse serviço duplamente intelectual e prático. Em 1953 criou o Museu do Índio, com o propósito de educar o povo brasileiro para a importância do índio na formação do Brasil. Lá estão preservados as artes e as notícias dos povos indígenas brasileiros, inclusive a biblioteca de Rondon e os documentos do SPI. No mesmo ano escreveu os fundamentos da criação do Parque Indígena do Xingu, um marco no indigenismo brasileiro, onde a demarcação das terras indígenas passou a seguir os costumes que os indígenas usam no reconhecimento e na apropriação territorial. Daí porque o Brasil ostenta a demarcação de grandes terras indígenas, cerca de 13% do seu território para uma população de 500.000 índios distribuídos entre 230 etnias distintas. Como etnólogo, Darcy pesquisou as culturas e as relações interétnicas de diversos povos indígenas, em especial os Kadiwéu, do pantanal matogrossense e os Urubu-Kaapor, da Amazônia maranhense. Seu livro Kadiwéu (1950, 1980) sobre a cultura e a arte do antigo povo Guaicuru, é um clássico da etnografia brasileira, e em seu Diários Índios (1996) ele recorda o tempo em que viveu com os Urubu-Kaapor, sua alegria de etnógrafo descobrindo um modo de viver indígena e o horror de presenciar a grave epidemia de sarampo que ceifou a vida de mais de uma centena de índios. Escreveu também sobre arte, parentesco, economia, relações interétnicas, demografia em relação a povos que conhecera ao vivo, como os Guarani, os Terena e os Bororo, e outros que compara para formular uma visão etnográfica do mundo indígena brasileiro. Fez dois primorosos filmes etnográficos sobre os Urubu-Kaapor (1951) e os Bororo (1954).
Em 1954, por ocasião do suicídio do presidente (1951-54) e ex-ditador (1930-1945) Getúlio Vargas, Darcy se deu conta de que o país perdera um político popular e leal ao pais, não um ditador a ser execrado, e passou a ter uma atitude mais nacionalista e pragmática diante da política brasileira. Em 1957 entrou na Universidade do Brasil para dar aulas de etnologia e antropologia e passou a colaborar com o educador Anísio Teixeira, que dirigia o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, um órgão do Ministério da Educação. Aproximaram-se do presidente Juscelino Kubitschek por ocasião da construção de Brasília, e juntos começaram a escrever e planejar a fundação da futura Universidade de Brasília (UnB).
Em 1962 tornou-se o primeiro reitor da UnB e abriu suas portas para cientistas do Brasil e do exterior para renovar a universidade brasileira. A UnB tornou-se um modelo na reforma universitária brasileira. Em 1963 tornou-se ministro da Educação e logo em seguida foi convocado pelo presidente João Goulart para ser o chefe da Casa Civil. Nesse tempo o Brasil tinha passado o plebiscito a favor da retomada do regime presidencialista, depois do breve interregno do parlamentarismo (1961-63), e estava em plena era de fervor popular pelas chamadas “reformas de base”. Essas reformas compreendiam três pontos: uma reforma agrária, uma reforma na educação e uma reforma na lei de remessa de lucros de empresas estrangeiras.
Em abril de 1964 os militares deram um golpe de estado obliterando os planos reformistas do governo Goulart. Darcy, como chefe da Casa Civil, foi dos últimos a deixar o governo. Viajou para o exílio no Uruguai.
Alguns meses depois era professor de antropologia da Universidade Oriental do Uruguai, que ajudou a renovar, e lá ficou até 1968. Nesse tempo dedicou-se à antropologia e escreveu diversas obras marcantes sobre teoria antropológica (O processo civilizatório, 1968), as perspectivas histórico-antropológicas para a América Latina (As Américas e a civilização, 1970), uma teoria sobre o Brasil (Os Brasileiros, 1972) um balanço da situação dos povos indígenas (Os índios e a civilização, 1976), e uma análise crítica sobre a América Latina (Os dilemas da América Latina, 1978).
Em setembro de 1968 decidiu-se a voltar ao Brasil. Achava que o movimento estudantil iria derrubar o governo militar. Foi preso incontinenti, interrogado por alguns meses e deportado. Em 1971 aceitou um convite do presidente do Peru, general Juan Velasco Alvarado, para coordenar algumas ações no processo revolucionário daquele pais. Dedicou-se com afinco a suas novas tarefas, tendo para isso contado com uma equipe formada por cientistas sociais peruanos e estrangeiros. Em 1972-73 esteve no Chile como assessor do presidente Allende, por quem estabeleceu uma altíssima admiração.
Até 1975 Darcy permaneceu no Peru, viajando a diversos países que o convidavam para renovar suas universidades. Trabalhou na criação da Universidade Central da Venezuela, na Universidade da Costa Rica e na Universidade Constantine, na Argélia, esta última, como no caso da Universidade de Brasília, junto com o arquiteto Oscar Niemeyer, que desenhou os seus prédios.
Em 1975 Darcy descobriu-se com um câncer de pulmão enquanto estava em Paris. Não quis se operar por lá e decidiu enfrentar sua doença no Brasil. Assim voltou, foi operado e sarou. Foi forçado a retornar ao Peru mas, a partir de 1977, começou a vir ao Brasil a pretexto de tratamento de saúde, até se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro. Nesse tempo iniciou sua carreira de romancista publicando Maíra (1976) e escrevendo O Mulo, publicado em 1981. Outros dois romances seguiram-se: Utopia Selvagem (1982) e Migo (1988).
Com a anistia promulgada em 1979, Darcy retomou sua cadeira de professor de antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com alguns embaraços, já que o establishment antropológico não lhe fora favorável. Segundo Darcy, a anistia o liberou dos processos políticos, mas os anos da ditadura militar deixara marcas autoritárias na academia que mudara de rumo em relação aos estudos sobre o Brasil.
Em 1982 Darcy estava engajado no movimento de reconstituição da ideologia trabalhista brasileira, sob a liderança do político gaúcho radicado no Rio de Janeiro, Leonel Brizola. Numa campanha memorável, a primeira campanha a governador dos estados brasileiros desde 1966, Darcy foi eleito vice-governador. Foi nomeado secretário de cultura e educação especial, com o propósito de implantar um plano de educação pública, de turno integral, no estado do Rio de Janeiro. Chamou essas novas escolas de CIEP, Centro Integrado de Educação Pública. Mais uma vez, Oscar Niemeyer foi o arquiteto de Darcy, não só para essas escolas mas também para diversas outras obras magníficas construídas na cidade do Rio de Janeiro. Entre elas destacam-se o Sambódromo, onde as Escolas de Samba desfilam por ocasião do carnaval, e o Monumento a Zumbi, em homenagem ao negro brasileiro.
Darcy se esforçou muito para implantar os CIEPs e inserir no pensamento e na prática educacional brasileiro a idéia de que só uma educação integral, com total apoio à criança, seja na parte pedagógica, seja na saúde e na recreação, poderia redimir o quadro espantoso de desigualdade social existente no Brasil. Sofreu a resistência de muita gente, inclusive do lado esquerdista do espectro político brasileiro. Muitos diziam que Darcy queria tão-somente fazer propaganda política.
Na eleição de 1986, Darcy sai candidato a governador do Rio de Janeiro e é derrotado. Quatro anos depois, Brizola, depois de fracassar em 1989 na tentativa de se eleger presidente do Brasil, na primeira eleição livre desde o golpe militar de 1964, é novamente eleito governador enquanto Darcy é eleito senador da República ambos com votação retumbante.
No Senado Federal, em Brasília, Darcy se esforça para implantar uma nova lei de educação, mais flexível, por uma lado, e mais universalista, por outro, capaz de absorver a gama diferenciada de possibilidades e experimentos educacionais existentes no pais. Finalmente seu projeto de lei passa em dezembro de 1996 e é sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
Mesmo no Senado, Darcy acumula trabalho no governo Brizola na reconstrução dos CIEPs e na fundação de uma nova universidade estadual, na cidade de Campos, a segunda mais importante do estado do Rio de Janeiro. Ao total, 500 CIEPs são construídos no segundo governo Brizola e a nova Universidade Estadual do Norte Fluminense é implantada e passa a funcionar com diversos institutos e departamentos em várias cidades da região.
Porém, mais uma vez, o partido político de Darcy perde as eleições estaduais no Rio de Janeiro, e o projeto CIEP é novamente relegado pelo novo governador. E assim se segue até o presente. Porém, a idéia de educação em tempo integral e integralizada com outras ações pedagógicas, sociais e culturais começa a tomar raízes entre os governos estaduais e municipais do Brasil. Em São Paulo, a prefeita Marta Suplicy (2001-2004) inicia o projeto de implantação de escolas integrais enquanto os pedagogos do Brasil propagam que a educação integral é a forma mais consistente de melhorar nossa educação. Para Darcy, se vivo estivesse, a implantação da educação integral constitui a ação mais proveitosa de sua vida pública, acima das universidades que construiu.
Darcy Ribeiro morreu aos 17 de fevereiro de 1997, vítima de câncer. Desde que descobriu sua condição apressou-se a escrever suas últimas obras. Em primeiro lugar, concluiu seu projeto de escrever sobre a formação do povo brasileiro, que chamou de O Povo Brasileiro, talvez sua obra mais importante, certamente a mais lida na atualidade, publicada em 1995. Diários Índios (1996) veio em seguida e é seu diário de antropólogo entre os Urubu-Kaapor, no período de 1950 a 1951, quando conviveu o drama de vida daquele povo indígena. Por fim, Mestiço é que é bom (1997) é uma entrevista brincalhona concedida em roda de diversos amigos intelectuais sobre o que ele pensa do Brasil, como foi sua vida de militante político, de intelectual engajado, seu amor pelas mulheres e sua sôfrega vontade de viver.
Obra
- A vasta bibliografia de Darcy Ribeiro pode ser encontrada nos três sites abaixo, especialmente na Fundação Darcy Ribeiro, que mantêm direitos sobre sua obra.
Cómo citar esta entrada: Pereira Gomes, Mércio (2020), “Ribeiro, Darcy”, en Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Disponible en https://diccionario.cedinci.org